sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Perdue á Paris

Paris 1 - a chegada

Então, para quem estiver interessado em saber, cá estou eu na capital dos avecs. Cheguei cá há uns dias e fui parar a Ivry-sur-Seine. Ivry fica fora da périférique de Paris mas é mesmo pegadinho, género cidade dormitório e onde se vê de tudo (mesmo de tudo) menos franceses. Misturam-se marroquinos, argelinos com chineses, vietnamitas, raças negras e outros que de tão misturados não se percebe o que são. Andam todos tranquilos e todos sabem o que fazer e para onde ir.
Resido portanto até ao final do mês num prédio de habitação social de uns senhores amigos e emigrantes portugueses que estão para Vieira do Minho. Típico apartamento de emigrante português: paredes forradas a papel de parede forrado por sua vez de fotografias dos filhos em criança, dos filhos já crescidos, das dezenas de netos e talvez bisnetos que acabaram por vir, vitrinas com loiças, almofadas bordadas, colchas floridas, bonequinhos, trapinhos, tralha que nunca mais acaba, e no entanto, é acolhedor.Paris é um mar de gente. O povo massifica-se de tal forma que parece água, escoa e infiltra-se por tudo o que é espaço, e move-se, move-se sempre. Paris é também imenso e denso, e apercebi-me disso quando subi a primeira vez a Montmartre. Já aprendi ainda que em Paris só se fala francês, por isso estou completamente lixada. E sim, é verdade que os franceses franceses têm sempre um ar antipático e o cabelo oleoso.Ainda não conheço bem os erasmus da minha escola. No entanto conheci os estrangeiros de Belleville, por intermédio da Mariana e da Diana que estão lá.

Paris 2 – Belleville rendez-vous

Perto das 5 da tarde de Sábado na estação de metro de Belleville. Chega a Mariana. A casa dela é já ali, acima um bocadito. É um studio, pequeno mas porreiro, com uma janela grande aberta para um logradouro para onde se abrem também as traseiras de um supermercado chinês. Consiste num espaço cúbico com uma área de cerca de 15m2 que se aproveita com uma mezzanine. A Mariana partilha o quarto com o João, também da Faup mas um bocado mais mais velho que nós. Tem uma vida que não se entende muito bem, primeiro porque a razão pela qual ele está cá ninguém sabe ao certo, e segundo porque, até pode passar o dia em casa, mas almoços e jantares tem-nos sempre marcados com gajas diferentes. E toca violino.
Tomado um cházinho e decidida a saída nocturna, eram 8 menos qualquer coisa quando saímos do studio a correr para o Franprix para comprar vinho, para os vietnamitas para comprar sandes e para o metro para a Alexandre Dumas para nos encontrarmos com o resto dos Erasmus de Belleville: a Yuna (coreana) e o Yuta (japonês), duas peças. Ela preocupava-se em encontrar um nice and beautiful european guy, e ele troca os rr pelos ll. A Catherine, alemã. A Ema, romena da Transilvânia, que tem uns caninos afiados e carinha de vampiro. Os italianos Sami e Alessandro, quase assumido casal gay, e a Cecilia, sevilhana e parecida connosco, portuguesas. Para além dela e nós, de Portugal, todos ficaram bêbedos com meio litro de cerveja. Na rua e depois no Flèche d’Or lá se passou a noite. Acabei por ir dormir ao studio de Belleville, mais a Diana, porque a noite parisiense começando cedo acaba cedo também e o metro fecha às duas. Ao acordar soube bem, uma mesinha redonda, uma janela com luz, cacete, confiture, beurre e café au lait. Tomava-se o petit déjeuner em Belleville, e conversava-se. Era domingo, para onde iríamos? Vamos a Montmartre? E fomos a Montmartre. Um bom dia, ainda que com cabelo oleoso e cheiro a sovaco.


Paris 3 - adaptação

Ora bem, o Moulin Rouge continua na Pigalle, a torre Eiffel para variar está de azul, o Sena corre para o mesmo lado de sempre, nos Champs Elysées continuam os paneleiros todos endinheirados a comer por 250 euros o prato e a olhar para a tua cara de desgraçadinha e de quem está farta de comer kebabs. Ja sou sócia do Centro Georges Pompidou, já sei de cor umas quantas linhas e estações de metro, já digo e percebo umas coisas em francês, já sei onde há lojas de bicharada (já que não vou poder ter nenhum bicho em casa), já sei que se bebem uns bons copos no Quartier Latin mas que são caros como o carago, que o ED e o Franprix são baratos e vendem garrafinhas de vinho individuais que nem são más de todo, já sei que os árabes são um bocado colas e é preciso despistá-los, já comprei um telemóvel foleiro francês, já tenho um passe que dá para tudo, até mesmo para andar de bicicleta. Sei lá, é muita coisa. Se não me tivessem gamado a máquina fotográfica, mostrava-vos como está a chegar o Outono, e depois mostrava-vos quando a neve começasse a cair, e as luzinhas da cidade á noite, e outras coisas jolies que há para aqui. Á tout á l’heure!

Paris 4 - Résidence Lila CIUP

Bem, já faz mais de uma semana que cheguei a Paris. Depois da confusão toda dos primeiros dias as coisas começam a assentar e cada vez me integro mais na vida parisiense. Já mudei a minha residência, já não estou em Ivry, mas sim e de vez na residência universitária na Porte des Lilas, na zona 19. Segundo me disseram as zonas 18, 19 e 20, que ficam a norte, são as piores de Paris, as mais perigosas, e eu ainda não recuperei do trauma do assalto no Porto, portanto ando tolhidinha pela rua. Na verdade mete um bocado de medo, mesmo durante o dia. Nas ruas agrupam-se os tais marroquinos e argelinos. Em Ivry também os havia mas aí estava-se bem, tinham a sua vida. Aqui, pelo contrário eles parecem não fazer nenhum e quando uma pessoa passa, param todos de falar e olham todos ao mesmo tempo com um ar nada agradável. Spooky!Enfim, como é a minha habitação para os próximos longos tempos: para variar é um studio, ou seja, em 18 m2 tenho o dormitório, o espaço de trabalho, a kitchenette e o wc. Arrumadinha e organizada como sou acho que a coisa não vai correr lá muito bem. No entanto, pelo que tenho visto, eu tive muita sorte com o meu quartinho! As brasileiras que conheci em Val-de-Seine vão pagar o dobro de mim, e têm para as duas aí uns 15 m2 e têm uma janela, sim, mas que dá para os fundos de um patiozinho de 2 metros que para se ver uma ponta de céu tem que se esticar o pescoço bem para fora. Eu estou numa zona alta e tenho vista para os arredores do norte. Á noite é porreiro, com as luzes todas acesas.Fiquei um bocado chocada quando passei as primeiras horas no studiozinho. Afinal não apanho net no quarto, não tenho televisão, nem um rádio. Tenho-me a mim e quatro paredes. Bati um bocado mal. Sempre tenho alguma música no pc, é o que me safa. Mas isto tem o seu lado positivo porque me obriga a estar sempre fora de casa, esteja sol ou chuva, seja para ir ter com alguém, seja para andar sozinha por aí, pela cidade fora, que, repito, é espectacular.
Aqui, para já faz-se de tudo menos estudar. É verdade, aulas nem vê-las, ou seja, c'est le paradis! Já houve inclusive tempo para as primeiras lides domésticas: já lavei roupinha á mão, já tive que lavar loiça com champô, tenho que comprar urgentemente uma vassoura.E estou maravilhada comigo: já abri uma conta bancária e fiz um seguro de habitação, a falar francês!
Logo temos por cá a Nuit Blanche (Noite Branca), o que de certeza vai ser espectacular, toda a cidade vai estar acordada até de manhã, vai haver espectáculos por todo o lado, vão estar abertos museus, etc. Talvez a torre Eiffel também tenha os elevadores a funcionar, e se estiverem não será mesmo nada mal pensado ir lá acima ver o amanhecer. Bem, depois conto como foi.
Só mais uma coisa, o Eiffel era realmente um ganda maluco!

Paris 5 - "Nuit Blanche"

Já lá vai quase uma semana desde a Nuit Blanche, e, estranhamente, o tempo passou a correr. Por falar em Nuit Blanche, na verdade fiquei um bocado desiludida. Foi uma noite porreira, sim senhor, fui com as brasileiras, Renielle e Camila, e encontramo-nos com os de Belleville que por sua vez trouxeram outros de La Villette e eramos mais que muitos. O encontro foi no Hôtel de Ville, mesmo no centro de Paris, e foi impossível chegar lá de metro porque quando tive que fazer transbordo não consegui caber em nenhum dos três metros que passaram por mim. Nunca tinha visto tanto povo na rua durante uma noite. Como vai começar a ser hábito, os cafés espalhados pelas ruas e boulevards hão de ficar sempre fora de questão, sendo substituídos pelos supermercados e mercearias na compra da bebida que acompanha a noite. Muito tempo esperamos na saída do metro para que o pessoal se juntasse, muito tempo demoramos a deslocar-nos alguns metros porque eramos muitos no meio de muitos mais, e muito tempo demorava a deslocação de um espectáculo para outro. Desde as 22.00h às 4.00h apenas conseguimos ver o fim de um concerto de nu electro numa praça que já não sei qual era, entrar numa igreja (St.Eustache) e não ter paciência para a projecção de um filme com elefantes, e ver uma instalação de luzinhas coloridas num edifício público qualquer. Ou os franceses são burros como nabos ou então eu é que não tenho capacidades para perceber, mas numa Nuit Blanche, a única em todo o ano, não houve metro a funcionar, quando os vários eventos estavam espalhados pela cidade toda, e para além disso, quando quisemos ir embora, a rede nocturna de autocarros, excepcionalmente naquela noite, tinha algumas linhas, as mais úteis, cortadas. Tive que percorrer metade de Paris a pé para ir embora, acompanhada até Belleville e depois sozinha. Só quando subi a rua toda de Belleville é que apareceu um bus que me deixou no ninho. Portanto, qual Torre Eiffel qual quê. Foi uma noite porreira, mas não uma Nuit Blanche porreira, como se estava á espera.Outro assunto: já tive duas aulas esta semana! E parece que já percebo o francês porque percebi a maior parte do que os profs disseram e digo mais, curti as aulas! Aulas diferentes do que tive na faup e que me pareceram bastante úteis. Uma delas, Morphologie des Surfaces, vai-nos ensinar a modelar superfícies mais complexas do que as eternas superfícies planas da faup. Para o curso de francês tivemos um teste para nos distribuirmos por três turmas consoante o nosso nível. A prof bastou-lhe olhar para mim com o meu ar de quem não sabe nadinha e colocou-me logo na turma dos principiantes sem me perguntar nada.
Logo na terça-feira seguinte, mais uma saída nocturna, desta vez com os nossos erasmus, de Val-de-Seine. Encontro na casa dos californianos. Vivem para aí uns quatro de entre os quais só me lembro do nome da Christina e do Mike, e da Stephanie, a alemã que teve que lá ficar a viver no sofá porque não tinha mais sítio nenhum. Têm um apartamento, digamos, de luxo. Primeiro é enorme, com uma sala espaçosa cheia de janelas e têm quartos! Segundo, estão no 11º andar e têm uma vista incrível: para um dos lados, uma boulevard que se perde de vista, e, para o outro a cidade, e no meio dela, imponente, a torre Eiffel. Bebeu-se vinho, jogou-se a um jogo esquisito de cartas, esperou-se por mais povo, espanhóis, venezuelanos, as italianas Maria e Giulia, viu-se (da varanda!) a torre durante uns momentos a piscar as suas luzinhas (em determinadas horas da noite ela lembra-se de fazer isso, naquele momento foi o show das 23.00h) e por fim tentou-se sair de casa mais ou menos às escondidas e sem fazer barulho porque a vizinha tinha ameaçado chamar a polícia. A seguir: Socorro!!! Fomos parar ao Duplex (ao lado do arco de triunfo) onde havia festa erasmus e para nós era de borla. Até aqui tudo bem. Mas depois..."un, dos, tres, un pasito bailante maria!" e "Booooomba!" Ahhh!!!Mataraaaaaam-me!!! E havia cada cromo, aquilo era de fugir para longe! O que manteve lá a gente foi o vinho bebido e mesmo assim dava para sofrer um bocado. Depois apanhei um Noctilien que me levou pela margem do Sena até Châtelet, e depois outro que me elevou por Belleville até às Lilas.
Na quinta-feira, repetiu-se a festa, que começou mais cedo (durante a tarde) na École d’Architecture de Val-de-Seine, organizada pela Cécile, a nossa relações internacionais lá da escola. Ouviu-se o director e tal, comeu-se num instante os petiscos que lá havia, e siga ao Monoprix comprar vinho e ir para um parque lá perto beber e misturar palavreado de todo o mundo.
Tem sido assim, festa atrás de festa, pouco estudo, e uns passeios turísticos a solo pela cidade. Quando não há que fazer vou por aí, e basta sair numa estação de metro diferente de cada vez para nos surpreendermos com um canto diferente da cidade. As minhas descobertas mais recentes foram o Parc des Buttes Chaumond, bem perto da minha casinha, que fica numa colina com o seu arvoredo mas que não impede a vista da cidade ao fundo. Se se estiver atento, por entre a vegetação consegue-se ver a colina da Sacré-coeur, e passam corvos de vez em quando. E a bassin de La Villete e o canal de St. Martin, mais água na cidade para além do Sena, e com um toque diferente.

Paris 6 - École d'architecture - coisas de la ville

Penso que já lá foi um mês desde que cheguei e nem notei que tanto tempo tivesse passado. Principalmente nos últimos dias, pois as aulas começaram a ser um bocado mais a sério e os dias correm despercebidos. Por falar em aulas, ainda não vos disse como é a escolinha. Portanto, a École Nationale Supérieure d’Architecture Paris Val-de-Seine (tanto nome!) fica separada do Sena por uns dez metros de uma rua, no 13ème arrondissement, muito perto da Bibliothèque François Miterrand, do Dominique Perrault. É uma zona que tem sido desenvolvida nos últimos anos, cheia de edifícios contemporâneos, um bocado diferentes daquilo a que estou habituada, e pelos vistos estes franceses têm uma paranóia qualquer com a ecologia porque se vê muito edifício revestido com plantinhas trepadeiras. A escola é uma antiga fábrica, cuja chaminé serve agora de saída de emergência, e á qual se junta uma parte nova, que mesmo agora, passadas umas semanas a ir lá todos os dias, ainda me perco nela porque é uma confusão desgraçada de pisos que se intercalam uns com os outros, e tem umas escadas para uns e outras para outros e os espaços não são claros e estão cheios de paneleirices e revestimentos esquisitos. Mas está-se bem lá, e, pelo menos para já, não me mete medo como a faup, nem me dá a volta á tripa quando, de manhã, a começo a ver ao longe. Os profs têm sido uns porreiros, não sei se será por sermos erasmus, mas nas aulas parece que só falam para nós e que nos curtem mais que ao resto dos alunos. Bem feito, que fora alguns (sim, alguns são fixes) eles são uns convencidos do pior.

A semana passada tivemos uma aula muito fora do comum: Environnements Sensibles. A prof é arquitecta e actriz e pôs-nos a fazer umas performances em que nos movimentamos de formas diferentes no espaço para o apreendermos consoante a variação das nossas posições e as diversas proximidades que se formam entre nós. A princípio o pessoal ria-se e achava que ela não regulava lá muito bem, mas acabou por ser giro. Pelos vistos as aulas vão ser sempre daquilo mas em espaços diferentes, o que me leva a pensar que jamais vou querer voltar para o tédio da faup. A próxima aula vai ser no jardin des Tuileries, entre o Louvre e a place de la Concorde, zona cheiinha de turistas que vão achar que somos um grupo de doidinhos em reabilitação.

Finalmente conseguimos encaminhar-nos num grupo de projecto, é que durante duas semanas eu e as brasileiras andávamos á procura de um prof que nos acompanhasse. Fartávamo-nos de entrar em ateliers e víamos povo a trabalhar sabe-se lá em quê e os profs invisíveis. Agora percebi, fazemos parte de um grupo, temos um trabalho para fazer e fazemo-lo e os profs aparecem lá de longe a longe, só para ver se não vá alguém precisar deles.

Vou ter uma disciplina sobre Design e Création Industrielle, em que vamos criar o nosso próprio objecto. Eu optei por fazer uma toillette publique: é público, é útil, e aproxima-se da arquitectura, que é o que me interessa, (e para resolver um dos problemas terei que inventar um sistema para afastar os casais que vão lá para dentro fazer coisas, pois ocupam por muito tempo o dispositivo). E por causa disto (não dos casais mas do design em geral) passei a tarde de sábado enfiada na biblioteca do Centro Pompidou, que é enorme e tem tudo, e é o Centro Pompidou!

Mas claro que a nossa vida parisiense não se resume apenas a aulas e trabalhos! Há sempre tempo para sortir e passar une bonne soirée! Os últimos rendez-vous nocturnos têm sido na Pont des Arts, perto da Ile de la cité. É tipo praça, em que o pessoal vai para lá conviver e beber, e em vez de bares cerca-se de rio, barcos que passam nele cheios de turistas que dizem adeus, luzinhas da cidade e torre Eiffel ao longe, coisas que dão àquela ponte um ambiente fantástico e dão vontade de ficar lá sempre. Faz é também um fresquinho jeitoso, mas que sabe bem sabe, apreciar a paisagem a beber um Bordeaux baratinho do supermercado e levar na cara o vento gelado que o Sena traz.
Ainda não falei também no pessoal internacional de Val-de-Seine. Há portanto as brasileiras, com quem desenvolvi uma relação mais familiar que com o resto. São a Camila e a Renielle, muito simpáticas e cheias de vida que trouxeram do calor do Rio e sempre prontas para a festa. Depois, são muitos. Há a belga Nathalie, a Fortuna d’Angelo de Napoli que tem um francês mais terrível que o meu e usa pérolas no pescoço, os californianos: Christina, Mike, Omar e outra que não sei como se chama, são os que têm o apartamento de luxo e que também adoram borga, as marroquinas Basma e Amina, que não saem muito connosco, a checa Lenka que está sempre a ver-se ao espelho, espanhóis a gastar: Mariajo (Maria José) pequenina tipo ratinho e toda despachada, Daniel (que pensamos nós que dá para o outro lado) Pablo, Carol, Laurent, Marta e por aí fora, e há um Jesus que passa a vida a dormir em pé. Os mexicanos Fernando, Justino e outra muito porreira que é a Mariana, outros italianos para além da Fortuna: Maria, Giulia e Cosimo. E há os desgraçados dos coreanos de Seul que não sabem sequer os números em francês. E eu não sei o nome deles… A lista continua tal como continua o pessoal a conhecer-se.

Quanto às lides domésticas não sei se digo se progredi ou não. Sim, já comprei uma vassoura e detergente para a loiça e lá vou mantendo o meu rico studiozinho em condições. Contudo, lavar roupa continua a ser uma aventura: por muito cuidado que tivesse em separar cores e tal, já fiquei sem um par de calças e uma t-shirt que se tingiram sei lá como com a única cor que não havia no monte de roupa. Bizarro. Mas eu hei-de chegar lá!
Por mencionar “bizarro”, não posso deixar de registar dois acontecimentos realmente bizarros a que assisti nos últimos dias, apesar de em Paris se verem muitas coisas pouco normais, como por exemplo os errantes mijados nas calças das profundezas das estações de metro, ou as pretas que rapam as sobrancelhas para desenharem outras mais a meio da testa. Um dos momentos chocantes deu-se, portanto, numa varanda, quando nos encaminhávamos para Montmartre outro domingo ao fim da tarde, em que se via um casal a acasalar com muita força e vontade. Logicamente não escaparam às centenas de flashs japoneses que foram naqueles instantes disparados.
Outra coisa: outro casal, desta vez quietinho, dormitando debaixo de umas escadas, distribuía mimos aos seus animais de estimação: dois cãezinhos muito simpáticos e uma igualmente simpática ratazana gorda e cinzenta com uma cauda do tamanho de uma salsicha que rabiava por dentro da roupa e ia beijando na boca os seus donos de vez em quando. Uma família feliz.

As minhas descobertas urbanas, por causa das aulas, foram ficando um pouco mais reduzidas. Mesmo assim, no domingo passado tive tempo de ir conhecer e apanhar um solzinho, que é cada vez mais frio, ao parque de Belleville. É, eles tem a mania dos parques, e eu também começo a ganhá-la porque são mesmo espaços em que apetece estar. O de Belleville particularmente porque fica numa encosta orientada a sul e tem uma óptima vista sobre a cidade para os lados de Montparnasse. Tem é mais povo que mato, mas com jeitinho se conquista um lugar ao sol.

Tenho vindo ainda a reparar que a minha percepção de Paris se tem alterado: lembro-me de achar que a cidade era enorme e eu me sentia perdida e reduzida, mas agora não acho que seja assim tão grande, nem sequer confusa. A cidade tornou-se bem clara e quando me encontro em qualquer ponto dela sei onde estou e para onde ficam todas as coisas. Não estou a dizer que não preciso de mapa, acho que hei-de precisar sempre, mas a percepção é outra. E sinto-me cada vez mais habitante de cá, principalmente quando me vejo de manhã a entrar no metro, a sair do metro, a encaminhar-me pelos labirintos subterrâneos, pelas passadeiras rolantes, a entrar noutro metro, a sair desse outro metro, sem reparar que o estou a fazer porque já se tornou hábito e com a cara antipática do sono com que andam os milhares de parisienses nessas mesmas manhãs a fazer o mesmo que eu.
E por agora é tudo. Au revoir!

Paris 7 - Tuileries - quotidiano

Afinal não chegámos a fazer figuras tristes no jardin des Tuileries, mas a tarde teve a sua piada. Para mim, este jardim é materialização do jardim da Alice no País das Maravilhas, na altura em que ela encontra o baralho de cartas e a dama de copas. É amplo, luminoso e tem a vegetação toda regrada, com filas de árvores muito alinhadas e que criam espaços mais encerrados e misteriosos, e outras filas de sebes aparadas geometricamente, de onde, a qualquer momento, poderá surgir um ás de espadas ou quem sabe um valete de paus que me indicará o caminho por entre aquelas fontes barrocas que estão lá mais ao fundo.
Para além do jardim de sempre encontrámos lá umas esculturas em escala arquitectónica, que criavam cada uma o seu ambiente, e a aula consistiu na sua análise, mais a análise de outras instalações espaciais do museu do Centro Pompidou, para onde fomos a seguir, e onde eu dei por mim a colar numa silenciosa sala escura com um filme que ia mostrando antenas diferentes de 2 em 2 minutos envolvidas em atmosferas frias e cinzentas e onde, suavemente, planavam plumas. Adoro antenas, pronto.

Começámos a ir às aulas de projecto, e para já não se faz nadinha. Tivemos algumas horas sentadas em torno de uma mesa com o nosso grupo de trabalho (de quem só me lembro dos nomes do Mael, do Ettienne e do Erwan) e comecei a desesperar por causa da perda de tempo e da inutilidade daquela situação, que, nesta altura do ano, se se desse na faup, seria uma catástrofe. Mas para eles, para os franceses, é perfeitamente normal. E lá estavam eles, sentados sem fazer nenhum, descontraidamente.

Tivemos também a nossa primeira visita guiada organizada pela Cécile, que foi á Cité d’Architecture, num dos lados do imponente edíficio do Trocadéro. Para quem nunca foi a Paris, o Trocadéro é o primeiro ponto de visita obrigatória, pois é a varanda magnífica que oferece a mais famosa vista sobre a Torre Eiffel. Para mim e para as brasileiras já não passa de um sítio onde há umas fontes cheias de moedinhas cintilantes – euros gostosos - que os turistas atiram em troca de sonhos e que para nós servem para pagar uns cafezinhos da manhã, ou seja para fazerem o que devem fazer – circular – e não para decidirem os destinos de ninguém.
Foi interessante a visita á Cité, que tinha uma maquete em tamanho real de um módulo de uma Unité d’Habitation do Corbusier. Mas claro que para quem já esteve numa Unité a sério, a piada reduz-se.
A seguir houve tempo para ir às compras á mais movimentada rua de compras de Paris, a Rue de Rivoli, apesar de eu não ter comprado nada porque o que tenho chega para sobreviver pelo menos para já, apesar de a minha roupa se ir aos bocados com as aventuras domésticas. Só há uma coisa que tenho mesmo que comprar que é um gorro, porque hoje pela primeira vez se pôs um frio de Inverno a sério. É que ainda que estivesse sol, na hora mais quente do dia deviam estar para aí uns 3 graus, que depois foram sempre a descer até aos negativos, até que a minha cabeça, quando cheguei a casa depois de um bocado de tempo na rua, parecia que tinha mingado e que me estava a apertar a mioleira, e a mioleira é importante manter.
Outros sítios para o shopping cheios de povo a qualquer hora e em qualquer dia são o Fórum des Halles, perto de Châtelet, lá no centro de ville, ou o centro comercial de La Défense, onde me encontrei encurralada quando pretendia sair do metro para ver a Grand’ Arche. Portanto, para quem é adepto das jornadas de domingo á tarde nos centros comerciais, quando vier a Paris, está aconselhado.
Pois é, no próximo fim-de-semana será o Hallowe’en e pelos vistos o parisiense é festejado no metro. Sim, no metro. Só sei que é no metro e não sei mais nada, nem como, nem em que parte do metro, nem em que sítio e vou esperar para desvendar o mistério. E assim as conversas têm girado em torno das vestimentas fantásticas que havemos de inventar para a ocasião, em vez das interrogações sobre afinal o que é que é para fazer a projecto neste semestre.

Paris 8 - Hallowe'en - 1er dimanche - Musique

Se no princípio o tempo chegava e sobrava para tudo e mais alguma coisa, os últimos dias têm sido uma correria. Aulas e trabalhos para fazer, ter que conseguir chegar ao supermercado antes das oito, fazer de comer, lavar loiça, lavar roupa, apanhar metros, estar ás tantas horas na Place Monge, ou ás tantas horas no Champ de Mars, chegar antes das duas ás estações para voltar para casa, etc, é duro. Por isso para vos contar as novidades têm sido mais difícil. Mas mesmo assim não há desculpa, por isso cá vai.

Na noite de 31 de Outubro lá nos transformamos em criaturas mostrengas e saímos para a rua. Durante o final do dia tinha observado as pessoas no metro e imaginava-as transformadas dali a umas horas, mas não, os franceses são demasiado apagados, ou demasiado sérios, ou demasiado importantes, ou bons demais para se tornarem noutra coisa qualquer que não eles próprios. De tal modo que quando viram aí umas três dezenas de mortos vivos eufóricos e a falarem uns dialectos estranhos enquanto se deslocavam pelas chiques ruas parisienses não percebiam de maneira nenhuma o que se estava a passar, assustando-se ou, alguns, atrevendo-se a perguntar o que queria dizer aquilo. Portanto, a tal festa no metro, vim a saber, tinha sido organizada por algum pessoal da nossa escola, e que era num metro que passaria às tantas horas na Gare de Austerlitz, mas o nosso grupo não o conseguiu apanhar e fomos então espantar gente normal para a Place de la Contrescarpe, onde já tínhamos estado noutra noite, em torno de um chafariz que lá tem (noites á espanhola), e onde os empregados da Haggen Dazs começam a ficar fartos de nos deixarem utilizar as casas de banho.
Tenho-me tornado guia de noctiliens, autocarros nocturnos. No final das noites, para além de pensar no meu próprio caminho para casa, traço também para outros, outros caminhos para outros pontos da cidade. Às vezes a tarefa não é fácil. A parte mais complicada é encontrar as paragens correctas, informação que não vem nos meus mapas, e já aconteceu andarmos mais de uma hora á procura delas, como na noite em que conhecemos a suíça Alexa, em casa dos californianos, (que anda por aqui até se cansar disto, a ganhar uns trocos com um trabalhito qualquer, para partir depois para outras andanças) e tivemos que ir de bem perto da torre Eiffel até á Gare de Montparnasse a altas horas da noite, encontrando todo o tipo de doidos pelo caminho.

Aqui, o primeiro domingo do mês é de aproveitar porque a maior parte das coisas a visitar (museus e monumentos) que geralmente são a pagar, deixam de o ser. Tinha acordado com a ideia de subir a qualquer coisa, e por isso fomos á Notre Dame para tentar subir às suas torres onde noutros tempos se recolhera um corcunda que tocava os sinos, mas ao domingo o acordar é tardio e quando lá chegámos as torres já tinham fechado as escadas. Assim, a subida foi ao arco de triunfo, de onde pudemos ver partir as lineares avenidas traçadas pelo Haussman há uns anos atrás, com as suas luzes acesas, mais as luzes ora vermelhas ora brancas do trânsito inquieto. E ainda que aquele ponto esteja longe de ser o centro de Paris, é o centro da chamada étoile e a nós parece-nos que estamos no lugar onde tudo começa, e que temos controlo sobre tudo o que nos rodeia. Como toda a gente sabe, uma das avenidas que dali partem são os Champs Élysées, e nessa direcção está um eixo que atravessa grande parte da cidade, que se prolonga pelos Champs até á Place de la Concorde, Tuilleries e acaba no Louvre, já perto de Châtelet.

Paris está cheia de música. Boa ou má, eis a banda sonora dos meus dias. Na estação de metro de Châtelet, onde passo todos os dias para mudar de linha, temos às segundas o homem que toca guitarradas de Andaluzia, às terças a banda de cantares populares romenos, ou de um país dali perto, às quintas a orquestra de violinistas russos (ou ucranianos), e aos domingos temo-los todos juntos. Noutras estações há a senhora que toca harpa, as sessões de jazz com o dueto de trompetistas, ou o homem que toca pandeireta sempre no mesmo ritmo horas a fio. Em Montmartre temos sempre ou o mexicano ou o outro amigo, que tocam guitarra e cantam músicas do Eric Clapton, ou da Tracy Chapman, ou dos U2, ou dos Beatles, num inglês arranhado. Em casa, tenho a Wi fm sur 102.3, la radio rock, a melhor que encontrei, apesar de passar também rock francês que é um bocado desgraçado mas que sempre é melhor que a rádio portuguesa que passa todo o tipo de pimbalhada, (e por isso não admira que os portugueses cá não sejam muito bem vistos, pelo que me parece e por mesmo os emigrantes portugueses não gostarem de dizer que o são). Há ainda os rapazes que vão a dois para as margens do Sena compor as suas guitarradas, que quem sabe um dia hão-de passar na Wi fm, e houve estes dias a Alimentation Génerale. Sim, tem o mesmo nome que as inúmeras mercearias por aí espalhadas, mas é um espaço nocturno cheio de erasmus e onde se ouve tanto a Kalinka, como a Bella Ciao ou os Fanfare Ciocarlia. E há os doudos que tentam cantar as suas cantigas por aí na sua própria língua, língua de bêbedo.

Hoje foi domingo outra vez e foi dia de patinagem no gelo. Ainda não foi na pista que vai abrir ao lado da torre Eiffel. Foi no Palais Omnisport de Bercy. Entre alguns tombos, muito poucos, lá deslizamos numa pista a sério, grande, com música, luzinhas coloridas e muita gente, por tempo ilimitado e por um preço muito acessível. O pior são os desdentados que têm a mania que são acrobatas e teimam em cruzar-se no nosso caminho às piruetas, e são dos que usam a calça de fato de treino metida por dentro da meia. Ainda não tinha visto por cá a espécie mas ela de facto existe!

Amanhã por cá faz-se ponte e fomos desencaminhados pela Mariajo a sair de Paris. Por isso, como daqui a 4 horas (não, 3!) vou ter que me por a pé para estar às 7.30 na Gare de Saint Lazare para apanhar o comboio para Rouen, acho que o melhor é ver se durmo e descanso os meus pezinhos machucados pelos patins malcheirosos de Bercy. E por falar em malcheirosos, estes franceses cheiram mal, muito mal, principalmente no metro, onde transpiram e respiram e tossem catarro, que fica lá e não tem como escapar daquele mundo soterrado. Bem, chega de paleio. Bonne nuit et á demain!

Paris 9 - Rouen

Eu não sou muito de chegar a tempo às coisas, eu e o tempo sempre tivemos um grave problema de relacionamento, mas desta vez consegui chegar á Gare dez minutos antes de o comboio partir, com uma oura desgraçada e olhos á chinês, e quem o perdeu foi a Diana do México e a própria organizadora da jornada, a Mariajo. Pois, jornada…Jornada era o que eu, a Reni e a Camila pensávamos que aquilo era, quando, já dentro do comboio e a ver para trás os arredores parisienses, o Daniel e a Mariana da Venezuela que não gosta do Chavez, nos explicaram em espanhol e no melhor francês possível que quando comprámos os bilhetes no dia anterior, todos ao molho, o de regresso não era para o mesmo dia da ida. Olhámos para os bilhetes, e sim, era verdade. Assim, com uma mochilinha com um pacote de bolachas e com a roupa que tinha no corpo lá me conformei que ia para uma viagem de dois dias. E aí aumentou o entusiasmo.
Não dá. Definitivamente não dá para dormir em comboios, a não ser que tenham camas. E apesar do cansaço pude então desfrutar de uma viagem de comboio por território francês não urbanizado, o que depois de muitos dias encurralada na densa malha de Paris e a circular em veículos subterrâneos, refresca mesmo a cabeça. Á medida que nos aproximávamos de Rouen, que fica para noroeste de Paris, na Normandie, a paisagem foi mudando. Deslocávamo-nos num mundo cinzento e quieto de planícies verdes, corvos negros e árvores despidas, cinzentas e frias, de ramos contorcidos. De vez em quando apareciam umas aldeolas onde não se via ninguém, com casas de tijolo vermelho e de telhados de pendente acentuada, negros do xisto.
Chegámos cedo a Rouen. A Majo e a Diana haviam de apanhar outro comboio mais tarde e nós entretanto iríamos encontrar um tecto que nos abrigasse durante a noite. Logicamente fomos ao mais barato, que divinamente se cruzou logo no nosso caminho quando começámos a procura. E bem boa que era a pensãozinha! Alugámos dois quartinhos, um para quatro e outro para três, com uma casa de banho cada um, ainda que não desse para estar sentado na sanita com a porta fechada porque as pernas não cabiam. Pousadas as tralhas, que no meu caso, da Reni e da Camila não eram nenhumas, metemo-nos a explorar a terra onde foi queimada a esquizofrénica da Joana d’Arc. Embora eu achasse mais interessante a cidade em si, a maior parte da tarde passámo-la a visitar os museus em que podíamos entrar sem pagar e de que também não desgostei. Vimos o museu de belas-artes cuja parte mais interessante era a dos impressionistas, onde estava uma das famosas pinturas atmosféricas sobre a catedral de Rouen feita pelo Monet. Numa das infinitas igrejas de Rouen atulhava-se uma colecção de ferrarias antigas que lhe davam uma graça extra em relação às outras, e noutro sítio permanecia a torre onde foi presa a santa Joaninha antes de ser morta. A dita catedral também por lá estava, com a sua vontade de romper o céu com os seus pináculos.

Frio. Naquela terra sente-se frio até aos ossos. E cheira a morte. É o frio, é o cinzento das nuvens, são as árvores depenadas e os seus ramos duros e pontiagudos, são as igrejas plenas de gótico, daquele gótico gótico, que vem nos filmes de terror, mórbido e feito de pedra fria, escura por si, escurecida pelo tempo e explorada pelo musgo, é a humidade, é o silêncio ou o vento que chia ao rasar as gárgulas, é a fogueira da Joana, é o cheiro a flores que se cheira no cemitério, são as caveiras do edifício da meia abandonada escola das artes, que tornam aquela cidade numa cidade onde a morte ronda cada esquina.
Numa outra dimensão, o McDonalds e os seus grands cafés foram o nosso refúgio do frio durante várias partes do dia. Bendito McDonalds!
Caída a noite, bem cedo, recolhemo-nos no quentinho do “hotel”, altura em que dormi uma das melhores sonecas dos últimos tempos, enquanto no quarto ao lado os outros tagarelavam coisas que vim a saber depois, mais tarde. Tais como o facto de o Daniel se assumir completamente gay, tal como a Majo se terá assumido completamente lésbica, ou a denúncia de mais dois gays entre os erasmus: o Fernando mexicano e o Fran espanhol.
Ao acordar uma hora mais tarde e depois de comido o petisco que seria o jantar, lá teve que ser: vinho a rolar para toda a gente, no acolhedor quarto para quatro. E depois dos ânimos acesos e mais algumas revelações voltamos a sair para o frio da noite acabando por nos enfiar num pub irlandês onde a Majo insistia para dançarmos e onde surgiram uns estranhos habitantes de Rouen que queriam paleio.

No dia seguinte quando o sol começou a tocar os telhados já tínhamos visto tudo o que havia de interessante para ver na pequena terra de Rouen, e o frio tinha-se entranhado em nós de tal maneira que não havia McDonalds que nos valesse, portanto decidimos tentar apanhar o comboio de regresso mais cedo. Conseguimos e até fomos na carruagem da primeira classe, só que foi encolhidinhos no chão abarrotado de gente do corredor que faz a distribuição para os coupés. E incrivelmente, aí, adormeci!

Paris 10 – Manecas

Para começar, Paris com Manecas é diferente.
Saí de casa para ir para o aeroporto de Orly quase ao mesmo tempo em que o Manecas embarcava para o avião no aeroporto Francisco Sá Carneiro. De RER pela Île-de-France fora lá me encaminhei para a saída do desembarque de cartaz nas mãos com letras bem grandes a dizer MANECAS, não fosse o novo visitante da capital francesa passar por mim sem me reconhecer. E vinha ele, no meio da multidão, meio zonzo de ter acabado de pôr os pés em terra firme. Abraços, saluts e observações de quem já não se via há muito tempo, e cinco minutos depois, tudo voltava a ser como antes, como se nunca nos tivéssemos separado.
Começámos por organizar a nova semana, tanto para mim como para ele, que estava para vir: tratar de passes para o metro, levar tralhas para casa, pôr o studio operacional para duas pessoas, desmontar o meu sistema de secagem de roupa (que consiste numa corda improvisada com todos os meus cintos atados uns nos outros presa á janela e atravessando o quarto na diagonal para se prender do outro lado ao móvel, o que impossibilita o movimento na casa) e ir buscar a cama e alugar uma almofada por três euros e meio ao pretinho da recepção (o nosso amigo).
E depois, dei início á minha primeira visita turística guiada, que me parece que tenha corrido bem. Ao terceiro dia e a andar nas calmas, o turista já conhecia todos os pontos principais a visitar, bem como outros que não vêm normalmente nos livros.
A princípio tentava conciliar as idas às aulas com o facto de ter por cá um visitante deslocado, que após algumas tentativas esforçadas de se orientar na cidade na minha ausência acabava sempre por não saber bem onde estava e por confundir as direcções dos caminhos ao meu encontro. Não é Manecas? Estava difícil chegar á République! E então acabei por faltar a algumas aulas, que também não eram assim tão importantes naqueles dias, e passar a sentir Paris de uma forma diferente, com alguém que me é familiar e ter da cidade um ponto de vista em conjunto, á nossa maneira.

Tão bons que foram estes dias! Ter alguém com quem falar enquanto se vai ao supermercado, ter alguém com quem falar antes de dormir, e ao acordar, e ao almoço e ao jantar. Foi bom passear por aí, pelas margens do Sena, pelas ruelas do quartier latin, ou pelas boulevards da rive gauche, estar nos momentos certos às horas certas, como nas inaugurações de protótipos nos stands automóveis dos Champs Élysées, ou no meio das mega operações de simulação de atentado na porte des Lilas quando apenas queríamos ir ver o edifício do PCF do Niemeyer, e que depois acabámos por ver num cinema a estreia de um filme, em que se encontravam os seus actores e realizadores a comer e a beber. Ou quando vimos mesmo a rodagem de uma cena de um filme, debaixo da Pont Neuf, e as centenas de ratazanas gordas que corriam de um lado para o outro na square du Vert-Galant quando sabiam que não passava ninguém, ou ainda o facto de, sem sabermos, chegarmos ao Louvre e naquele dia da semana a partir daquela hora era gratuita a visita. Fantástico foi perdermo-nos lá dentro, mais que a própria Mona Lisa, a Vénus de Milo, a Vitória de Samotrácia ou os sarcófagos egípcios.
Foi bom termos ido beber o vinho para Montmartre e para a Notre Dame e para a Pont des Arts, onde encontrámos aquelas gentes estranhas e perdidas como nós, e onde começámos a ter conversas sérias.
Espectaculares estavam as montras natalícias das Galeries Lafayette, e interessante era a banda de música nas escadas da ópera Garnier enquanto esperávamos por um Vilas Boas parisiense mais a sua pequena Victoria.
Fantástica foi a subida á Torre Eiffel (a grua) ali há tanto tempo á espera que a penetrássemos para lá em cima gelarmos os pés e as mãos, o nariz e as orelhas de tanto tempo que lá passámos deslumbrados ao vermos uma cidadezona lá em baixo tão pequenininha na sua escala, e a perder-se de vista em extensão, e de esperarmos que escurecesse plenamente para que as luzes em baixo começassem a brilhar na sua força máxima.
Inesquecível foi a última noite, em que depois de termos ido comprar o barrete e o cachecol, nos metemos a percorrer Paris a pé á malucos, desde a Sorbonne até ao arco de triunfo, onde a meio vimos a roda gigante iluminada de branco, na Concorde, e as luzinhas brancas nas árvores pelos campos elíseos acima, depois daquele mais ou menos bom jantar na cantina universitária que nos soube pela vida. E no fim da caminhada apeteceu-nos comer um gelado, mas dinheiro já não havia. E então fomos para o quentinho do studio, falar até às tantas, porque seriam as últimas horas que ainda tínhamos para o fazer.

Se a chegada de alguém que fazia parte da vida portuguesa foi espectacular, por outro lado veio mudar completamente a minha forma de estar aqui. É que o Manecas trouxe com ele o mundo daí, a cuja distância eu já me tinha habituado forçosamente. Trouxe toda a memória de casa e do quotidiano anterior, que estava até aqui meio adormecida e que agora se reavivou numa saudade cortante. Sobretudo quando cheguei a casa depois de uma nova despedida, desta vez em em Orly (como eu não suporto despedidas…) e me encontrei novamente no meu studio comigo, com quatro paredes, e agora, para variar, com alguns novos coabitantes: os bichinhos carpinteiros que se desenvolveram no rodapé de madeira, debaixo da cama.

Paris 11 - Projet Urbain - Soirées - fin de journée au Luxembourg

Nos últimos dias comecei a sentir aquele nervoso miudinho das entregas da faup. Sim, porque aqui também vamos ter entregas, e percebi que lá por sermos erasmus também temos que fazer alguma coisa para mostrarmos serviço. É a entrega de projecto que já foi adiada duas vezes, felizmente, porque senão não havia maneira de entregar alguma coisa a tempo e eu chumbava de certeza, pois aqui não tenho a verdadeira noção da realidade académica, como qualquer erasmus, que por se encontrar deslocado tem a sensação de estar numas férias prolongadas.
Este nervoso miudinho pôs-me a pensar em habituais questões tais como se “serei capaz de ter as coisas prontas a tempo?” e que então me fizeram entrar naquele estado de recolhimento característico dos dias anteriores às entregas de projecto na faup. Eu não quero de maneira nenhuma chumbar em erasmus. Seria demasiado humilhante, chumbar em erasmus.
No entanto, como eu me conheço mais ou menos bem, ficar um dia inteiro metida num espaço fechado a trabalhar dá comigo em doida, e por isso tenho que sair, nem que seja por uns minutos, só para experimentar o ar que anda lá por fora. Portanto, qualquer pretexto e qualquer convite servem para desanuviar um bocado das frustrações consequentes de não conseguir encontrar uma solução decente para as inundações do terreno de Orly (onde é o nosso projecto) pelas cheias do Sena, que até aqui só mostrava maravilhas.

Um dos pretextos foi então a ida ao club Mix, onde havia festa erasmus, onde já estivemos para ir umas três vezes e acabou por não calhar. Desta vez acabámos por ir com os espanhóis (ou melhor, os que falam castelhano: espanhóis, venezuelanos e mexicanos). E só tenho uma coisa a dizer do sítio: quando lá entrei tive uma sensação muito familiar mas que ao mesmo tempo era estranha por não conseguir entender de imediato de onde vinha a familiaridade. A sensação era olfactiva, e depois de fungar algumas vezes para perceber, lá se deu o clique e se revelou todo o mistério. Aquele sítio subterrâneo, como o são a maior parte dos clubes em Paris, cheirava ao mesmo desodorizante que eu uso cá por estas bandas, ou seja, o mais aceitável mais barato do mercado. Erasmus…De resto era um bocado assustador. Com gente macabra e com intenções assustadoras. Mas tudo se aguenta. Quando se está longe da nossa normalidade, há que aguentar. O único sítio decente a que fui até agora terá sido o Flèche d’Or, onde fui na minha primeira noite parisiense e onde não voltei a por os pés não sei bem porquê.
Ainda hoje fui, numa noite calma, com a Camila, a Laís e a Paula, experimentar mais um bocado a noite da cidade. Fomos um bocado á toa para os lados de Saint-Michel para ver se encontrávamos descontraidamente um sítio para beber um copo e ouvir alguma música. Primeira experiência: entrámos num bar, fomos á casa de banho, ficámos a ver o bar, meia dúzia de rapazes e raparigas esquisitíssimos a delirar com Bob Sinclar. Não tínhamos decidido se queríamos consumir algum fino por oito euros e por isso o barman foi chamar o segurança para nos expulsar da espelunca. Segunda experiência: vimos fila para um bar no quartier latin. Deve ser bom, pensámos nós. Quase a chegar á porta notámos que a fila era só de raparigas. Olhando lá para dentro percebia-se porquê: strip masculino foleirão com gajos de tanga de pele de leopardo. Apesar de a Camila insistir que devíamos entrar, desviamo-nos para a entrada do bar ao lado. Terceira experiência: bar latino, música latina. Atravessámos a pista das danças, e tudo bem, umas mesinhas para a gente beber um fininho em paz e conversar um bocado. Finos de 25 cl a quatro euros e meio, não está mal de todo, vamos pedir. Coisa e tal (em francês) não há finos de 25 cl a partir da uma. Ou seja, 50 cl a nove euros e cada pessoa tem que consumir pelo menos uma bebida. Fugimos dali para fora e ficámo-nos pela terceira experiência. A quarta arrumava com qualquer um.

Paris de dia agora é difícil. São quatro e meia e já não se vê luz. Já não digo sol porque as nuvens cobriram Paris há muitos dias e teimam em ficar. A última vez que desfrutei do sol foi no jardim de Luxemburgo, onde vergonhosamente ainda não tinha ido e é se calhar o mais parisiense de todos. Aproveitei aí uns dez minutos de sol, numas cadeiras de ferro que lá tem, rebatidas, em que só não se adormece nelas porque a temperatura é para congelar. Mas é lindo. Vê-se muito céu, frio e com aviões a passar, mais os seus rastos que se prolongam durante mais tempo que o normal contra a luz do sol a despedir-se. Vêem-se caminhos densos de árvores e de ramagem delicada que nos fecham esse céu. Vê-se canalha a andar de pónei e velhinhos que não têm que fazer, e vê-se o palácio de Luxemburgo.



Paris 12 - Entre deveres e a Ile de St. Louis - manjares parisienses

Então, lá tive a minha primeira entrega de Projecto em terras de la Seine. Após alguns dias de trabalho sistemático, ainda que nada comparável ao trabalho da faup acabei por fazer o Rendu em Photoshop e Powerpoint em vez das habituais entregas em cad.
Conclusão: estes franceses têm mesmo a mania, e no fundo, coitadinhos deles! Primeiro, o método de trabalho é uma verdadeira porcaria. Não temos um prof que nos acompanhe a sério, não nos dizem nada de jeito e não exercem qualquer pressão sobre nós, o que parece bom mas não é nada positivo, porque chegamos á véspera da entrega sem entender realmente o que é suposto fazer. E quando nos dizem alguma coisa, são completamente contraditórios nas exigências, de modo que a três dias da entrega fiz e refiz o trabalho para ver se iria corresponder ao solicitado, e mesmo no dia da apresentação e da avaliação (que aqui é no mesmo dia da entrega) fiquei sem perceber o que queriam afinal. Não sei se é por não compreender plenamente o francês, mas talvez não seja, pois os trabalhos dos outros mostravam a mesma dúvida e a mesma falta de objectivos (para além de serem uma autêntica desgraça). Mas enfim, lá passei a projecto apesar de não ter aprendido nada para além do facto de ser mais importante pensar primeiro na forma de reutilizar a água da chuva em vez de pensar na organização do espaço, como nos ensinara o nosso Távora. Bem, está feito e já estou de férias outra vez, mas depois disto digo Amén á faup!

Férias outra vez, isto é o que interessa! Siga para o café de la plage com samba, pagode e forró ao vivo para aquecer em plena noite gelada parisiense! Dançar samba tem que se lhe diga, mas já começo a chegar lá. É inevitável quando se convive com o Brasil.

Retomei a vida turística. Chamados pela Cécile fomos visitar na Cité Universitaire a Maison do Brasil e a Fundação da Suiça, do Corbusier, e mais uma série de edifícios menos conhecidos mas igualmente interessantes, como o atelier onde pintava o Georges Braques, contemporâneo cubista do Picasso, e projectado pelo Auguste Perret, ou o primeiro edifício que o Corbusier fez em Paris.

Ao fim do dia apeteceu ir comer um crepezinho á Ile de Saint Louis. Agora com a Diana do Porto com quem já não estava há algum tempo. É complicado por estarmos em escolas diferentes. E como é reconfortante encontrar alguém da nossa terra, que conhece as mesmas coisas, que partilha as mesmas ideias, que tem as mesmas opiniões dos franceses…como foi bom confirmar que os franceses são ridículos, e como foi divertido gozar com isso! Eu sei que estou a ser um bocado má com eles, mas na verdade, apesar de não se poder generalizar as pessoas pelas suas nacionalidades, e apesar de haver gente francesa espectacular, a maioria tem a tendência histórica, ou inata, de se achar que está no centro do mundo, de pensar que são pioneiros em tudo, que são os que encaminham a evolução da civilização, que são eles os vanguardistas. E na verdade não se vê grande coisa. Em alguns aspectos eles estão á frente, sim, sobretudo nas paneleirices, mas noutros também falham muito.
Bem, com a Diana, e mais dois colegas dela, fui descobrir os barzinhos escondidos na zona da Sorbonne/Panteão. Gostei. Não se vêem as esquisitices do quartier latin. Os bares são mais tascos e o ambiente é mais descontraído e acolhedor, com menos manias, mais autêntico, mais normal. Um dos bares é o “Piano-vache”, onde costuma ir o Johnny Depp quando vem a Paris e que estava cheio como um ovo, por isso acabámos por ir beber umas bières nöel a outro ali ao lado, do mesmo género. A seguir, Noctilien abarrotado de gente para chegar a casa, mais uma vez.

E hoje mais uma tentativa falhada de subir a Notre Dame! Aquele “negócio” (como dizem os brasileiros) fecha mesmo cedo e por isso agora só para Fevereiro. Sim, porque no primeiro domingo de Janeiro ainda vou estar aí convosco, na terrinha! De que tenho muitas saudades, tal como do meu Vicentinho gato que parece que está balofo, e vossas também pronto, admito. E por isso, já que não subi o raio da igreja, fui ver se vos comprava uns souvenirs por aqueles lados. Mas digo-vos já: não espereis grande coisa pois estas bugigangas pirosas são estupidamente caras e eu não posso ficar pobrezinha porque tenho que comer!

Por falar em comer, certamente uma das coisas mais importantes da vida, como é o manger á Paris? Quer dizer, com o que é que eu tenho sobrevivido por cá? Puré. Puré com poulet, puré com poisson, puré com cordon-bleu, puré com puré. É bom. O puré é bom, é instantâneo, faz-se em dois minutos, é nutritivo, tem hidratos de carbono, custa cinquenta cêntimos e dá para quatro refeições. É perfeito, enfim. Mais…Couscous.
É certo o couscous aqui, mas como eu me fartei de couscous no Porto, tento evitá-lo. Arroz? Arroz é para esquecer, mas por mim tudo bem porque eu também não sou grande apreciadora. Quanto a des frites, dou graças a não sei quem por não ter em casa uma frigideira para não as poder fazer, senão por esta altura já tinha aí uns vinte quilos a mais. Em contrapartida tenho-me regalado com saumon fumé, que j’adore, e que aqui se vende num saco consistente a um euro que faz com que nunca falte por cá por casa. O brié e o camembert da marca champion são igualmente uma perdição, tal como os iogurtes com fromage blanc ou á la crème fraiche, principalmente com fruits du bois, como eu adoro sabores silvestres! E quando faço o chá com esses sabores e fica o cheirinho no studio durante o dia todo, e a noite toda, e no dia seguinte... É suficiente para me deixar bem-disposta ao acordar, o cheiro a groselha, a framboesa, a amora…sei lá bem porquê. E há o emmental rapé para misturar com a sopa de legumes, e há de vez em quando o paté de fois, ou o Tarama de salmão, para barrar no cacete que eu trago para casa também debaixo do braço, tal como os avecs o fazem a partir das seis e meia da tarde. Não tenho a possibilidade de variar muito, primeiro porque no supermercado há uma série de produtos baratos, os que eu compro em média por um euro cada um, mas na maioria são bastante caros. Por exemplo uma postinha de bacalhau fica por uns 9 a 14 euros. Segundo porque estou limitada pelos equipamentos de cozinha, não tenho forno nem micro-ondas. Mas uma vez tive muita vontade de comer um quiche lorraine e improvisei um forno de panela que acabou por funcionar, por isso a partir de agora vou começar a variar mais um bocado.
E existem os divinos restaurantes do Crous (as cantinas universitárias), que se não fossem eles eu morria de beribéri com certeza. Aí podemos comer de tudo um pouco, ainda que eles continuem a exagerar nas batatas fritas.
Lá me vou alimentando, a avó que não se preocupe que eu hei-de chegar gordinha.

Ás vezes calha eu não encontrar os supermercados abertos e já não ter nenhum produto no minúsculo congelador lá de casa, e aí recorro á minha única hipótese: o Mcdonalds, ouvert 7 sur 7, aquele parasita que se alimenta dos nossos momentos de fraqueza e que está á espreita em qualquer esquina. Mais c’est la vie, pois senão só me restam as spécialités krudes, cruzes credo! Na verdade, ironicamente, o Mcdonalds será a empresa mais democrática a seguir ao metro de Paris, pois tanto se pode sentar ao teu lado um sem abrigo a contar os trocos para a batata frita como um engravatadinho cheio de pastel, tanto um casal de mongolóides sem dedos como como um casal de intelectuais de alternam a trinca no hamburguer com o virar da página do livro, tanto negros como albinos ou achinesados. Ao Mcdonalds vai de tudo.

Portanto, entre salmão fumado e hamburguers rançosos, estou é aos saltinhos para comer o bacalhauzinho no Natal, com aquele gosto a alho e azeite com que apenas se pode sonhar por cá, e, mais que tudo, para tomar um café! Como eu quero um café português carago! (Se alguém visse a minha cara agora…) Quero um CAFÉ a sério! Simplesmente UM CAFÉ. Mais nada!

E para acabar, deixo-vos uma pergunta. Eu sei que é normal ver ratos e ratazanas na rua, nos jardins e nas estações de metro. Mas será que é normal ver ratos no supermercado como havia no Champion?

Até breve!

Paris 13 - voyage, voyage!

Já não me lembro do que fiz na minha última semana de Dezembro em Paris, antes de ir aí para o Natal, mas lembro-me muito bem de como foi a minha viagem de regresso temporário a casa, pois é difícil de esquecer.
Depois de passar um dia inteiro no quarto em trabalhos profundos para desentranhar a desarrumação que o caracterizara durante tanto tempo, e a empacotar o mínimo de tralha possível para levar comigo, saí em direcção da gare d’Austerlitz. Pouca tralha pensei eu que tinha metido na mala, quando a levantei antes de sair de casa, mas quando comecei o percurso da residência para a estação de metro da porte des Lilas, que costumo fazer em três minutos, pensei para mim própria que nunca iria conseguir chegar a Guimarães, até que me apareceu um anjo! É, um anjo do Gabão! Meu vizinho da residência que eu nunca tinha visto antes e que, vendo-me em tal batalha com o meu camião, me fez o favor enorme de o levar até á entrada do metro.
Mas dali é que iam ser elas! É que nem sempre nas estações de metro há escadas rolantes, e se alguma vez disse que eram labirintos é porque são mesmo labirintos, com sobe e desces á mistura!
Comecei a transpirar que nem uma torneira com o esforço extraordinário que fazia por cada metro que avançava com a mala de arrastão, que me batia nas pernas por cada passo que dava e que me fazia revirar os olhos por cada degrau que tivesse que subir. Para ajudar ao sacrifício alguém feliz da vida decidiu meter-se algures na linha do metro para que eu tivesse que fazer aquela penitência a triplicar, apanhar outros três metros e subir e descer três vezes mais escadarias que o que era suposto. Hora e meia depois cheguei a Austerlitz ainda mais de rastos que a própria mala e quase que morri no momento em que o revisor me apontou para o fundo do comboio, bem lá longe, para o penúltimo vagão, que quase não dava para ver de tão longe que estava, dizendo que era ali que eu tinha que embarcar. Já não tive força para meter a mala lá dentro, meteram-na por mim, e não consegui limpar de mim todo o suor que juntei pelo caminho. E continuava a achar que tinha trazido o essencial.
Segunda etapa: desvendar o mistério sobre o qual eu tinha estado a magicar, o mistério de quem seriam os meus companheiros de quarto naquelas horas de viagem nocturna. Se tivesse a quem rezar, tinha rezado para que me calhasse de tudo menos povo que ressonasse.
Então, ainda a recuperar o fôlego, descobri que os cinco que iam partilhar comigo os dois metros cúbicos do compartimento eram uma mulher de uns quarenta anos até simpática e quatro homens já depois dos seus sessenta, idade muito propícia para os roncos. Quando arrancou o comboio e comecei a ver Paris a andar estava eu encostada á janela do corredor a pensar na minha triste situação de condenada a uma noite sem fim. No compartimento, de seis camas, três de cada lado, sobrepostas, fiquei com a cama do meio, do lado direito. Tinha preferido a de cima de todo.
Mal acabámos de sair de Paris já todos se haviam arrumado nas gavetas com os seus cobertores. Eram onze e meia da noite! Ninguém consegue ir para a cama às onze e meia da noite! Eu nem sequer tinha jantado! Trouxe parte das minhas tralhas para o corredor e cruzando as pernas da melhor maneira que pude lá me consegui sentar mais ou menos confortavelmente na estreita passagem a comer as minhas sandes de fiambre de peru. Pus-me a ler os jornais do metro para ver se vinha o sono e fui-me levantando de cada vez que passavam ali os revisores, que me perguntavam sempre se eu não ia para a cama, já que era a última pessoa do comboio que ainda estava de fora. Dizia que já ia. Do compartimento ao lado do meu surgiu um amarroquinado com dentes de ouro e com uma oura já jeitosa a avaliar pelo bafo a vinho que mandava. Queria paleio e perguntava se eu não tinha sítio para dormir, felizmente não me calhou ficar no cubículo dele. Mais uma vez passaram os revisores e me perguntaram novamente se não ia para a cama. Farta daquilo e sem conseguir ler os jornais, fui ao quarto de banho vestir umas calças de fato de treino e engolir um Atarax, e fui-me enfiar na minha gaveta.
Alguém ouviu as preces que não fiz, pois os homens do meu quarto não tiveram um ressonar tão estrondoso como esperara, e com a ajuda do Atarax e do baloiçar do comboio nos carris, consegui adormecer ligeiramente. Não me tinha era lembrado de esperar uma coisa: do cheiro nauseabundo com que levei a noite toda naquele minúsculo espaço fechado por todos os lados, que era de uma mistura potente de bafo quente com vapor de suor, temperado de chulé, e talvez, muito certamente, com outros odores orgânicos adicionados, lançados para o ar involuntariamente durante o sono. Levei com aquela atmosfera concentrada durante horas, e, se é normal habituarmo-nos a um ambiente depois de estarmos nele algum tempo, ali isso não foi possível. De cada vez que acordava, sempre que o comboio parava em alguma estação, o cheiro que me entrava pelo nariz batia-me directamente no cérebro. Tentava afundar-me o máximo possível na almofada, mas não havia nada a fazer. O homem por baixo de mim evaporava bafo que incrivelmente se penetrava pela minha cama e chegava plenamente aos meus sentidos. Tive ainda que me encolher muito bem na minha estreita prateleira para não tocar na parede que escorria todas as nojentas partículas daquele ar que se condensaram ali, num líquido frio e tão malcheiroso quanto o gás correspondente.
Acordei em Bayonne, às sete da manhã, ainda de noite, já depois de toda a gente e porque me abanaram a dizer que estávamos a chegar. Fui a última a abandonar o comboio em Irun, porque quando lá chegara ainda estava a lavar os dentes. Sentia-me a cheirar muito mal e o cheiro que acumulei durante a noite ia ficar comigo até ao fim da viagem, quisesse eu ou não.
Com desconto da carte 12-25 que fiz em Paris, comprei bilhete até Orense e uma hora depois voltei a entrar noutro comboio. Fiquei furiosa quando me apercebi que o meu lugar não era junto da janela e que esse já estava ocupado por uma rapariga, mas como o comboio não encheu mudei-me para outro lado. Só que foi só até San Sebastian, pois apareceu a revisora com quem discuti sem razão numa mistura de sono com espanhol e francês que trazia comigo, e que não descansou enquanto eu não fui, revoltada, para o meu sítio de onde não se via nada, quando o comboio continuava com lugares á janela vazios. Longas horas ainda me separavam da terrinha de Candoso e tive que me conformar com isso. Entre umas sonecas fazia umas visitas ao vagão-cafetaria, que tinha janelas enormes, um bom café con leche bastante barato, e onde conversava com o Alex, um estudante de engenharia em San Sebastian que iria até Vigo, passar o Natal com a família, e a quem pertencia o lugar que eu tinha ocupado no princípio, tendo assistido á minha confusa discussão com a revisora. Assim se ia percorrendo Espanha, que se cobriu de neve em quase todo o seu território. Á medida que se faziam quilómetros e se passavam povoações, fui vendo alterados os meus companheiros de viagem. A rapariga que ia ao meu lado, que não olhou nunca para o exterior e que achou que eu estava sempre a olhar para ela nas minhas tentativas de ver as serras ao longe, foi entretanto substituída por outra, que passou o tempo a ler revistas cor-de-rosa com a princesa Letícia na capa, e que mas ofereceu quando mais tarde saiu (porque talvez achasse que eu as tentava ler quando queria ver as serras ao longe) dando lugar a uma nova ocupante, uma senhora a quem eu roubei o lugar numa atitude inocente durante o momento de troca. Não deixei de lhe perguntar na esperança que dissesse que não se queria o lugar. Ela disse que não e então eu deliciei-me com a paisagem branquinha que foi passando por mim e que me ajudou a passar a terra, até que escureceu e as longas horas de comboio que trazia detrás começaram a pesar.
Á medida que nos aproximávamos de Orense aumentava a ansiedade de chegar, e o comboio parava, e não arrancava das estações, e começava a andar cada vez mais devagar e chegou mesmo a andar para trás e enfim, subitamente, dei por mim a ver a minha mala a ser descida do comboio e a sentir-me abraçada pelos meus pais. Tinha finalmente chegado! E fomos a pôr a conversa em dia até chegarmos a casa.
Não há outra maneira de descrever a sensação de ter chegado a casa senão dizer que tive a sensação de ter chegado a casa. É uma óptima sensação! Tão boa, tão boa que conseguiu atenuar a sensação de a minha mala me ter arrancado os braços dos ombros ou as dores das negras gigantes que me ela me foi fazer na parte de trás das pernas!

Paris 14 - vacances de Nöel - Paris sous la neige

Posso dizer que nas duas semanas (e qualquer coisa) que estive em casa me esqueci completamente que alguma vez estive em Paris por três meses. E foi tal o fartote de bacalhau que parece que me mantive aí por dois anos!
Mas agora que me vejo cá novamente parece-me que não foram suficientes as conversas, os encontros e os que ficaram por cumprir, as saídas e as não saídas, o nosso tempo, o meu tempo aí. Não me chegaram as noites de primos no círculo a ver filmes de terror com garfinhos, e o consequente paleio disparatado madrugadas dentro, as voltinhas por S. Martinho com todo os seus únicos e irrepetíveis perpétuos mutantes, a Areosa, o bairro, a rua 5 de Outubro, os acordares tardios e a pachorra no sofá, a alucinante televisão, a bicharada, as casas com gente, as conversas com a avó e o atravessar da rua de pantufas para ir visitá-la, a farta celebração do Natal durante três dias, os outros três dias a comemorar o passar do ano até não se poder comer mais, a minha cama, a despensa e o frigorífico lá de casa, os cozinhados da mãe e do pai degustados na mesa do costume, pequena demais para nós os quatro.
Não me chegou o Toural, a rua de Santo António ou a de Gil Vicente, nem o parolo shopping. Não me chegaram as super bocks na praça, ou as idas ao mini, mais os brindes a quem fez anos e a quem não os fez, as tentativas de conversas sérias e menos sérias, as gargalhadas por tudo e por nada, as mudanças de planos á ultima hora ou os regressos ao ninho de manhã.

Tanta familiaridade, tanto conforto e segurança, não me bastaram nem sobraram para que possa dizer agora que já não preciso, que não me fazem falta nem saudade.
Se ainda tivesse isso tudo, ficava em Paris para sempre!

Mas chega de pieguice e cá estou eu mais uma vez e agora até Abril, porque apesar de ter aí umas três semanas de férias de carnaval em Fevereiro (como estes franceses trabalham duro!), o mais certo será arranjar por cá um trabalhinho para ganhar uns trocos extra. Pois, é que agora Paris já não é nada de novo e estou com planos sérios de fazer por aí umas viagens. Quando voltei a pôr cá os pés, apesar de encontrar a cidade cheia de neve e mais bonita que nunca, bateu-me subitamente na consciência o facto de estar em território conhecido e batido, e que pouco mais havia a descobrir por cá. Na verdade, ainda que me faltem muitas coisas para visitar, a leitura geral que faço agora da cidade é que não é mais do que o espaço onde se desenrolam as minhas rotinas, o que ficou constatado com as duas semanas de trabalho para as entregas na faculdade, mas de que me apercebi desde o momento em que aterrei em Orly. Com a segunda chegada não veio a mesma quantidade de entusiasmo que na primeira e então preocupei-me, pois percebi que estou como o Variações: que só estou bem onde não estou e que só quero ir aonde não vou. Pobre de mim!
Mas enquanto não levar os meus planos avante, vou continuar a contar-vos as minhas andanças por aqui, por mais ou menos entusiasmantes que sejam.

Então, mal cheguei á minha residência fui avisada de que tinha que mudar de quarto, porque o meu iria para obras, o que não percebi, pois o quarto está novo e o único vestígio do passar do tempo naquele espaço é mesmo o desenvolvimento dos bichinhos carpinteiros no rodapé. Mas lá carreguei as minhas tralhas aos bocados do 408 para o 509. As vantagens foram uma vista melhor e a mudança dos tons bordeaux e laranja vivo para o verde-escuro e verde alface suave. As desvantagens foram uma tremenda constipação porque aqui o aquecimento não funciona, e uma desorientação anormal pois o quarto é completamente igual ao outro, e no entanto é-lhe simétrico em tudo, fazendo com que, mesmo depois de uma semana, continue a abrir o armário das panelas quando quero iogurtes.

Antes de me ter embrenhado em trabalhos de final de semestre fui por aí ver a neve. Os champs de mars estavam espectaculares, mas inesquecível, sublime, mágico, estava o jardin des Tuileries ao cair a tarde! Quase não se via ninguém, e os transeuntes que havia movimentavam-se tão silenciosamente que os confundi com almas perdidas que ali vagueavam contra a atmosfera homogénea e branca, o cenário sem princípio nem fim que parecia não fazer parte de lugar algum da superfície terrestre. As estátuas de pedra branca por ali espalhadas, que se confundiam com o ambiente, mostravam uma calma extraordinária ausente nos dias de sol. Do lado da Concorde estava montada, também de branco, uma roda gigante que rodava com tanta quietude como a que permanecia naquele espaço. As pombas dormiam em cima da água congelada dos lagos dos chafarizes, e fundiram-se com o gelo, gelaram também. Tudo se tinha congelado: as pombas, as árvores, a água, a roda, as pessoas, as estátuas, o sol, o céu e até mesmo o tempo. E eu congelava-me juntamente com os Tuileries, se não estivesse a saborear um delicioso crepe a evaporar chocolate quente!

Paris 15 - dias de eremita - 3D á La géode - aventuras com sem-abrigo

Portanto, pouco tempo tive até me enfiar na résidence Lila a engonhar nos meus deveres, durante duas semanas que pareceram não mostrar fim. Arranquei cabelos, engoli unhas, desenvolvi borbulhas, perdi a noção do tempo, desaprendi a lidar com pessoas e a falar, passando a emitir apenas sons quando me cruzava com alguém nas idas ao rés-do-chão buscar café, fosse a meio da manhã ou a meio da noite, ou com o empregado do supermercado, aonde ia por vezes buscar embalagens de massa á carbonara congelada com que me fui mantendo nestes dias. Deixei o chão de casa mudar do verde para o acinzentado pela camada de cotão e pó que acumulou, deixei a loiça completamente á vontade para transformar a kitchenette num resort para bactérias e dei comigo a invocar duendes para que me viessem dar uma mãozinha.
No fundo, nestes dias, deixei de ser gente para me tornar no Zé Manel da Teixeira. Só não me cresceu barba, nem desenvolvi piolhos, pelo que tivesse dado conta. E como eu tenho sempre a sorte do meu lado, nesta altura insistiram em visitar-me no meu covil: foi o homem que veio fazer o inquérito para o recenseamento da população, foi mais não sei quem que foi mexer no quadro da luz sei lá para quê, foi o funcionário da recepção para por a mão nos aquecedores para ver que não funcionavam ou os homens que vieram arranjá-los. E foi notória em todos eles a mesma expressão de pavor mal passavam da porta para dentro e faziam ziguezagues para fintar a barafunda que estava pelo chão. Felizmente só terei que voltar a enfrentar a minha vergonha com o fininho picão da recepção, os outros não os hei-de ver mais.
Mas isto não foi nada por que não tivesse passado antes, com as entregas da faup, e aqui só cheguei a este ponto porque não nos tinham avisado que era para entregar as coisas tão cedo, senão nas duas semanas antes.
Nesta entrega de projecto andei com uma confusão na cabeça ainda maior que a da entrega anterior. Desta vez não houve uma única conversa com qualquer professor, nenhum apareceu sequer para dizer alguma coisa que fosse. Ficou-se a saber quais eram os elementos para entregar porque alguém disse a outro alguém, que disse a um outro que nos veio dizer a nós, que achava que era coisa e tal. Fiz o que achei que devia ser feito. Mas, na avaliação, eles não compreenderam as minhas ideias e eu não compreendi as ideias que tentaram impor-me, que pareciam ter menos nexo que sei lá o quê! Foi tão absurdo ouvir o que defendiam que cheguei a um ponto em que já me começava a divertir com a situação, e os júris vendo-me divertir ficaram divertidos também e gerou-se ali um ambiente de boa disposição. Claro que me deram uma porcaria de uma nota, tal como deram uma porcaria de uma nota aos meus colegas do grupo. No entanto, deu para passar que é o que importa e o ambiente alegre manteve-se.
Agora, depois de tudo, até cansa de tanto ficar de papo para o ar! Férias novamente e nem um mês passou desde as últimas do Natal. E então, resta-me dedicar-me ao turismo.

Já fui ver um filmezinho em 3D com óculos e tudo e ecrã esférico ao festival da Géode, na Cité des Sciences et de l’Indutrie, em La Villette, e, (eu não devia dizer isto) fui pela primeira vez ao museu d’Orsay! E, (também não devia dizer isto) acabei por não ver nada. Mas a culpa não foi minha. Tinha acabado de entrar, lancei um olhar sobre a ala central, infiltrei-me na sala de exposições temporárias, e quando me pus a olhar para um pastel do Renoir com bailarinas, é disparado o alarme. Evacuação imediata pelas saídas de emergência, que estavam logo ali, e fim da visita. Eu e um mar de povo ficámos á espera para entender o que se estava a passar, a ouvir a repetição dos avisos de evacuação em todas as línguas, e na esperança que pudéssemos voltar a entrar. Mas isso não aconteceu e eu continuo sem saber o que se passara lá dentro.

É verdade, estão sempre a acontecer coisas em Paris. Eu sempre achei que algum dia havia de tropeçar num sem abrigo, e hoje foi o dia. Já esteve para acontecer em Châtelet quando havia uma dúzia deles espalhados pelo passeio como embrulhos, mas hoje, quando abri a porta para entrar no metro lá se me meteu um debaixo dos pés, deitado do lado de dentro. Contudo, ele não se queixou e assustei-me mais eu que ele. Depois entendi que ele não se queixou porque estava que nem podia de borrachice, e já com o metro em marcha, entre cambalhotas e malhos conseguiu pôr-se de pé para dar uma valente mijadela contra os assentos, que escoou em seguida de uma ponta á outra da carruagem. Sem abrigo há muitos por cá, e de todos os tipos. Se eu tivesse que fazer parte da comunidade juntava-me aos que se instalaram no cais do metro do Hôtel de Ville, onde montaram um autêntico lar, com sofás improvisados com as suas mantas, dispostos em torno de uma estantezinha com decorações de flores em jarras, bonequinhos e peluches a substituir os animais de companhia. Penso que esperam um televisor para completar a sala, mas enquanto ele não chega, vai-se jogando às cartas e bebendo uns canecos.

Paris 16 - redescoberta

A maior parte dos erasmus aproveitaram estes dias de fazer nenhum para irem por aí, conhecer mundo. Uns foram para a Bélgica, outros para Itália, alguns para a Rússia, e outros, aí uma quinzena de hispânicos, aqueles com quem passei a maior parte dos meus momentos por cá, estão para os Alpes suíços, numa casinha de madeira perdida nas montanhas carregadas de neve, que pertence ao Laurent, o madrileno de origens suíças. Eu poderia ter ido, e custa saber que por ali se esquia e se passam grandes soirées a beber uns copos á volta da lareira, e eu continuo aqui, a espremer Paris. Mas fiquei de arranjar trabalho nesta altura para ter o dinheiro que me poderia pagar tais dias alpinos, apesar de continuar a achar que o La Fontaine é uma besta. Quem mais ficou foi a Camila, e a Reni, mas ela teve cá o namorado, em transição para uns meses de erasmus em Coimbra. Assim, a mim e á Camila restou-nos juntarmo-nos para enfrentar tempos solitários em Paris. Claro está que as saídas nocturnas foram reduzidas drasticamente, restando a festa que o Fernando e o Jesus organizaram na sua casita, antes de irem para não sei onde, em que entre duas dezenas de gajas, os quatro rapazes presentes eram os três gays conhecidos do grupo de erasmus (Daniel, Fran e Fernando) o que leva a crer que o Jesus também anda mais para lá que para cá.
Mas, no entanto, estes acabaram por ser os dias mais ricos em exploração turística, pois eu e a Camila fizemos uma lista do que ainda tínhamos por conhecer, e fomos riscando, até não restar quase nada, pelo que nos tivesse parecido.
Tivemos a sorte de apanhar o primeiro domingo de Fevereiro, que deu um grande empurrão nas nossas explorações parisienses. E á conta destes dias, voltei a ter o mesmo entusiasmo da primeira vez que me vi cá, pois entendi que Paris é múltiplo e infinito, e mesmo que se volte a um mesmo lugar desta cidade, em tempos diferentes, a experiência nunca é a mesma.
Portanto, se disse que isto é território batido, corrijo. Paris é espaço de eterna descoberta, e estou contente com isso.
Ainda que Paris se desdobre muito para além de uma lista, dela pudemos riscar o Panteão, cujo interesse maior serão os restos mortais de gentes como Voltaire, Alexandre Dumas, Pierre e Marie Curie, Victor Hugo ou Émile Zola, e ainda o fascinante pêndulo inventado por Foucault, preso á cúpula, para provar o movimento de rotação terrestre e provocar-nos uma sensação vertiginosa. Outro tópico riscado foi a Concièrgerie, lugar obscuro durante várias etapas da História francesa, onde foram sendo presas diversas gentes do poder de cada época, com diversas ideologias em mente e degolados por elas. De entre os presos, a figura que mais sobressai será a da Maria Antonieta, que ainda lá está, num quarto mal iluminado por uma janela pequena gradeada de ferro, sentada ao lado da cama e olhando fixamente para o espelho que tem diante de si, calada como uma morta.
Riscamos também, enfim, as torres sineiras da Notre-dame. E o desespero que cresceu com o adiamento de tal experiência, ou os cinquenta minutos de espera para entrar enquanto um palhaço nos entretinha ao assustar povo na rua, não terão sido em vão. Agora confirmo: as duas prioridades para um visitante desta cidade são sem dúvida a subida á torre Eiffel e a subida á Notre-dame de Paris. Percorrer labirintos de telhados de cobre e pedras trabalhadas por alguém há muito tempo, é fantástico. Encontrarmo-nos a vigiar das alturas todas as pequenas vivências urbanas lá em baixo, lado a lado com as rudes, frias e firmes gárgulas, que olham sempre fixas e obcecadas para alguma coisa, é impressionante. Fazer, por momentos, parte desse mundo povoado de seres estranhos e calados, á parte, entre o céu e a cidade é grandioso, tal como coabitar com outros personagens quietos, mais humanos, que não querem com as bestas vigiar gentes como nós para se esquecerem e nos fazerem esquecer que há abaixo toda uma rede organizada de relações, ocupações, afazeres, que ali, no alto, não interessam para nada.

Seguindo o roteiro fomos parar á porta da Sainte Chapelle, que de fora se assemelha a tantas outras igrejas góticas espalhadas por aí. Mas pelos vistos ela tem dois pisos, o que a torna mais que normal, e, para além disso, vim a saber, ao segundo apenas acedia o rei da altura mais o seu braço direito. Foi chocante a visão quando passei da porta para dentro: era a igreja mais bonita que alguma vez tinha visto. Misturava-se ali uma complexidade incrível de colunas, pilastras, abóbadas de arestas, nichos e ornamentos combinados entre pedra e madeira e em escala perfeita anulando qualquer vontade de modificar o que quer que fosse. Para além deste rico jogo de formas, às suas superfícies tatuava-se uma deslumbrante mistura de cores que deliciava a visão. Com tanto espanto nem me lembrei que o pé-direito no interior não correspondia às dimensões exteriores da capela, portanto subi numa espécie de letargia umas escadinhas em caracol atrás de outros turistas. E, paralisei: ali é que estava a verdadeira Chapelle! Fiquei escandalizada, pois não consegui perceber como poderia existir uma igreja ainda mais bonita que a igreja mais bonita do mundo! Penso que qualquer um acabado de sair das estreitas escadinhas teve a mesma reacção de horror perante tanta beleza. Só digo que, para além de tudo o que havia de perfeito no piso inferior, todos os planos que criavam aquele espaço impossível eram em quase toda a totalidade perfurados de luz filtrada por gigantes vitrais, de cima a baixo. Dizer mais não vale a pena.

Não me cansei de atravessar as muitas pontes sobre o Sena, entre a rive-gauche e a rive-droite, a Ile de Saint Louis ou a de la cité. E não me cansei de ver aquele rio que nestes dias frios e enevoados de Fevereiro ganha a mesma cor dos edifícios que o contornam, ou, não sei bem, se não são estes que se pintam da mesma cor da água, de um verde musgo esbranquiçado, aquele que o cobre ganha quando oxida, nem me fartei de ver uma cidade reflectida em fragmentos dourados contra o negro da água á noite.
Várias foram as vezes que fui á Défense, á bassin de la Villette ou ao jardin des Tuileries, e nunca os encontrei iguais. De manhã á noite a cidade altera-se vezes sem conta, tal como nunca é a mesma á medida que os dias passam, ou os meses. Ainda que os prédios e as ruas sejam sempre os mesmos, eles têm o poder de gozar com a nossa memória, pois parece-nos sempre que são substituídos por outros, de outras cores e estados de humor diferentes.
As pessoas que vemos uma vez, existem só no momento e desaparecem para sempre, dando lugar a outras, que hão-de dar lugar a outras. Os percursos, ainda que se façam num mesmo espaço e num mesmo sentido, combinando-se com todas as mudanças, fazem com que os estivéssemos a percorrer pela primeira vez.
E agora percebi o desassossego dos impressionistas: tarefa árdua de mostrar um lugar como ele é, pois ele não o é de uma determinada maneira senão apenas num determinado instante.
E não me hei-de cansar nunca das viagens de RER. Cada uma é especial, seja a ver a chuva branca que cai devagar por não querer ser chuva, seja a sentir o sol baixo e pálido a fazer-me cócegas nos olhos.


Paris 17 - N. Wilmotte Architectes, 13 rue de Béarn, 75003 Paris - os meus turistas

A tranquilidade dos dias anteriores rapidamente veio a ser abalada. Os tempos que se seguiram foram mais desnorteantes que o carrossel de Hotel de Ville. Tudo começa quando me liga a Diana de Belleville: Então? Tudo bem? Que tens feito? (Ando por aí…) Olha…tenho uma amiga, lá da Faup, a Renata, não sei se conheces, que queria vir cá para a semana mas não tenho onde a meter porque já vou alojar outros dois. Dá para a deixares ficar aí na residência? (Acho que não conheço, mas claro que dá. Ela que venha.) Lembrei-me que nesta mesma semana estavam para chegar outros três turistas daí da terrinha, o Zé Balinha, a Liliana e o Ricardo espanhol, e também tinha que arranjar onde os meter. Assim tive que regressar pela primeira vez a Ivry, desde que lá morei em finais de Setembro, para combinar com a dona Laurinda, que por azar se encontrava nesta altura por aqui, a melhor forma de compartilharmos a mesma casa nos dias que se seguiriam. Também quase me esquecia que iria começar a trabalhar e que teria que ir á primeira entrevista de emprego em toda a história da minha vidinha, que correu bem e que me fez lembrar que a partir daí iria abalar por completo os meus horários de sono, já que teria que começar a pôr-me a pé às oito da manhã, que a meu ver, é hora para galinhas. A Renata chegou e realmente não me lembrava de a ter visto pela Faup, mas desde logo nos demos bem, a partir do momento em que tirou do mochilão que tinha às costas uma caixa de chocolates Lindt. Era ainda mais tímida do que eu, o que me deixou á vontade e a sentir-me bem por ser eu desta vez quem teria a tarefa de fazer conversa. Pouco nos encontrámos a partir daí. De manhã eu saía primeiro para ir para o trabalho, e á noite ela chegava depois, já que andava a ver Paris pela primeira vez. Era aí que conversávamos um bocado sobre a cidade, antes de adormecermos cansadas.
Para o meu trabalhinho, saio em Chemin Vert, na Boulevard Beaumarchais, entre a République e a Bastille. É rápido de casa lá. O mais desagradável é a vontade de atropelar o povo na conexão dos dois metros que tenho que apanhar, que se desloca num sonambulismo enervante, mais o cheiro enjoativo do excesso de manteiga dos croissants que se vendem ali nos túneis, por cima do meu cafezinho matinal. Até chegar ao atelier passo por umas ruelas com montras de instrumentos musicais e algumas boulangeries. Ali perto fica a apetecível place des Vosges, mas interrompo o caminho para lá porque tenho que tocar á campainha do Nelson Willmotte Architectes. Willmotte não é um nome estranho por estas bandas. Vim a saber que assinava um dos projectos finalistas para uma nova torre na Défense, entre os nomes de Jean Nouvel, Norman Foster ou Libeskind. O meu patrão é portanto o filho desse tal Willmotte, e acabou o curso há pouco tempo na mesma escola onde eu estou. Abriu, pouco depois, um porreiro espaço de trabalho num rés-do-chão de uma das melhores zonas de Paris, com colunas á entrada, tecto alto e janelas de cima a baixo, com um pequeno jardim de inverno nas traseiras mais uma cave para guardar materiais abobadada de tijolo. Tem tido encomendas que cheguem para dar trabalho a três erasmus que precisam de uns trocos, e dá espaço também á Natalia, a namorada que veio de Madrid fazer erasmus como nós e por cá ficou. O ambiente logicamente é óptimo. Na descontracção vamos fazendo maquetes enquanto ouvimos música agradável e falamos de coisas.
Um dia, depois de sair do trabalho, desviei o meu trajecto habitual para Saint Michel, onde estavam cansados de me esperar três perdidos com uma mala de rodinhas cada um. Tinham chegado os meus turistas. Neste dia mudei-me com eles para Ivry-sur-Seine, tendo dado as chaves do studio á Renata, e não a voltando a ver mais. Mais tarde, quando voltei a casa, encontrei na secretária um postal que me deixou com a “Florence sous la neige” em 1950, e que agradecia toda a simpatia em tê-la recebido tão gentilmente sem sequer a conhecer, lembrando-me que Paris é uma cidade lindíssima e única e que fazer erasmus é uma experiência para a vida.
Portanto, depois de ir com os turistas deixar tralhas á casa da dona Laurinda, demos início a uma das minhas mais irrequietas semanas em Paris e certamente às suas mais agitadas férias de sempre. É que eu não lhes dei descanso nem descansei eu própria enquanto não lhes mostrei tudo o que é preciso ver aqui. Num grande corridinho batemos a Ile de la cité, Saint-Michel, Notre-dame, Ponts Neuf, des Arts, Saint Germain des Près, Châtelet, Hotel de Ville, Rue de Rivoli, Louvre, Tuileries, Concorde, Les Halles, Saint Eustache, Pompidou, Trocadéro, Champs de Mars, Torre Eiffel, Champs Élysées, Arco de Triunfo, Pigalle, Montmartre, Sacré-Coeur, PCF, Défense, Bassin e Parc de La Villette, Géode e cité des Sciences, Cemitério Père Lachaise, Ópera Garnier, Galerias Lafayette, e por aí fora.
Quando dei por isso, encontrava-me em Paris com mais três sujeitos completamente á la portugaise: a falar mal e a rir alto no gozo com tudo o que nos parecia anormal, chamando toda a atenção dos franceses esticadinhos e calados que torciam o nariz empinado e pensando que os portugueses (ou espanhóis) são todos iguais, uns espalhafatosos sem quaisquer postura. E, coitadinhos, mal eles sabem o agradável que é ser assim! Na verdade, eles são mestres em inventar coisas para se entreterem, mas limitam-se a entreterem-se sem conseguirem divertir-se com o entretenimento, ainda que achem o contrário.
Cansei os meus turistas com quilómetros de viagens de metro que não lhes hão-de deixar saudades, por isso e pelo nojo que naturalmente lhes meteu aquele porco e decadente mundo subterrâneo, e dei-lhes cabo das solas dos sapatos, pois Paris é pequeno mas na sua própria escala, e ao que é já ali, na nossa terra, vai-se sempre de carro. Em certos momentos tornámo-nos uma nova espécie de sem abrigo, pois passávamos mais de doze horas por dia nas ruas da cidade, jantando em bancos de jardim na Pigalle, ou almoçando a bater os dentes debaixo de uma ponte para Bercy, enquanto nevava e voavam com o vento gelado as bem contadas fatias de salpicão para meter na meia baguete a que cada um tinha direito. Espaços como o Pompidou ou a Cité des Sciences tornaram-se também abrigos dessa neve que nestes dias se fartou de cair, bem como estações de repouso e de alívio de necessidades. Só conseguimos manter mais ou menos o aspecto, ainda que devêssemos ter andado com cara de meios mortos pelas tão poucas horas de sono para tanta batida.

Mas nem sempre tivemos vida desgraçada, também houve refeições no restaurante, quase sempre no quartier latin, onde havia muita escolha, e onde, mesmo assim, a Liliana se arrependia de não ter trazido de Pevidém uma marmita de bolinhos de bacalhau, cujo facto o Zé agradecia por não se importar de ter que dar conta de dois menus.
Algumas soirées foram chez moi, na résidence, onde nos regalámos de jantares gourmet, de variedades de foie-gras, patés de cabeça de porco e queijos com cheiro a chulé que não cabiam na minúscula mesa do meu studio, ou com pâtes bem confeccionadas pelo chef Ricardo acompanhadas de cerveja boémia de litro e meio.
Quando a jornada acabava, á noitinha, lá regressávamos a Ivry, onde a dona Laurinda estremunhada nos abria a porta para aquilo que nesta altura nos sabia tão bem como um hotel de cinco estrelas.
Quando chegou o dia de os turistas regressarem às suas terras, lembraram-se que queriam levar torrezinhas Eiffel a dois euros por sete. Então depois de um almoço no “crous” levei-os ao sítio, ao pé da ponte entre Hôtel de Ville e a Notre Dame. Se tivéssemos que deitar culpas a alguma coisa pelo que viria a suceder, o melhor teria sido a esta ida às compras de torrezinhas, pois com ela ficaram com as horas certinhas para chegar a Orly e fazerem o check in. Acontece que a dona Laurinda, na melhor das intenções, nos indicou uma forma de lá chegar alternativa ao RER: um autocarro que saía de perto de casa e que passaria ali supostamente de sete em sete minutos. Mas o autocarro não passava, pelo menos não para Orly, e o que passava era o tempo. E quando veio o autocarro, ele não chegava ao destino. E quando lá chegou, já não havia avião. E então eu vi os meus turistas sentadinhos em três bancos, agarrados às suas malas de rodinhas, e a pensar noutros três bancos: três bancos vazios que já tinham ido ao ar. Assim como foram ao ar os seus planos e compromissos para os dois dias próximos, e serem substituídos por mais umas voltinhas parisienses e umas soirées nas Lilas.
Na manhã da segunda tentativa de regresso a casa, acordámos bem cedo. Enquanto os turistas empacotavam tralha mais uma vez, lá fora descia uma neve roliça e lenta, que cobria agora todas as superfícies onde pousava. Pelo carreiro que cortava o branco frio, lá iam os três com as maletas atrás para a paragem de autocarro. Desta vez havia tempo, o autocarro veio, e vi-o a arrancar por entre os flocos de neve às voltinhas no ar, levando-os definitivamente ao destino.

Depois disto, andei por aqui entre o trabalhinho e o descanso para recuperação, e, subitamente, surgiu a oportunidade de aproveitar uns dias para ir a casa. Uma semana depois era a minha vez de estar em Orly com uma mala de rodinhas, e estava uma óptima manhã para voar! Ao sol, sobre nuvens, planícies de cidadezinhas e campos retalhados, praias e mar, Cantábricos nevados e casas soltas em território minhoto, fui preparando o apetite para um bacalhauzinho prometido para o almoço!

Paris 18 - Printemps à vista - Fontainebleu

Soube a pouco a minha visita a casa, no entanto guardei nesses dias a vontade de regressar a Paris. Não posso comparar estes dois lugares de que faço parte nos tempos que correm, pois cada um deles me oferece coisas diferentes e que se complementam. Num tenho, como já disse, o conforto, a segurança, a familiaridade. Noutro está a aventura, a exploração e o moi même. Já não me imagino sem esta transição entre um mundo e outro, e lembro-me que já gastei metade do tempo que me deram para o experimentar, e que a partir de agora passará a voar por ser precisamente o último. Mas esforço-me por esquecer esta nostalgia antecipada e por continuar a viver aquilo que me há-de ficar para sempre na memória.

Então, quando regressei a Paris, já tudo estava diferente: as aulas iam recomeçar e todos os erasmus estavam regressados á base. A neve não voltou a cair, os dias aumentaram e o tempo deixou de ser tão frio. Num sábado á tarde encontrámo-nos todos na Ópera Garnier, para sermos levados numa visita por galerias de talha dourada, escadarias rebuscadas de curvas e confluências, varandas com vista para o sol ou para as grands boulevards, e camarotes forrados de um veludo tão vermelho e quente quanto as caras do público alegre em noite de espectáculo. Em frente á ópera permanecia uma banda que atirava música para o ar enquanto dávamos as boas vindas aos novos erasmus que tinham chegado com o novo semestre: a Kim e o Phillip da África do Sul, e as três gregas cujos nomes são impossíveis de eu vos dizer.
Voltaram também as confusas inscrições pedagógicas para o novo semestre em Val-de-Seine. Após um processo complexo entre ler papelada para preencher papelada, uma busca de opiniões sobre os vários grupos de projecto e uma caça a um professor fugitivo para que me aceitasse, lá me consegui matricular num novo atelier. Foi nesta altura que nos foi revelada uma informação esclarecedora: o nosso professor do semestre anterior mantém uma relação pouco simpática com o prof que tinha lançado o nosso tema de trabalho, daí que não houvesse empenho a orientar-nos, e, para além disso, o que lançou o projecto foi precisamente um dos profs que avaliou o meu trabalho. Ao sabê-lo tranquilizei-me, pois percebi que o problema não tinha estado só em mim.
Portanto, depois de quase duas semanas a “tratar de assuntos”, o engonhar que os franceses tanto adoram, finalmente arrancaram as aulas.
Agora, o novo atelier, parece-me bem mais organizado, e o prof, ainda que pense que eu seja sempre uma pessoa diferente quando me dirige a palavra, fala numa linguagem que eu entendo. Parece que sim, que fala de arquitectura como eu a conheço. E já houve entrega, felizmente. Haverá outras quatro, em que poderemos ter opiniões do nosso trabalho para podermos evoluir, e para não termos que vomitar o projecto todo de uma vez, a uns dias do fim. Assim, tranquilamente, fiz um projecto para um centro cultural em Gentilly, e, para surpresa minha, em vez de ser enxovalhada na avaliação como tinham sido quase todos os vinte e oito que apresentaram os projectos antes de mim, apenas ouvia repetidas as palavras “intéligent et intéréssant”. Foi estranho, na Faup nunca mo teriam dito pelo que fiz. Mas soube bem!

Este semestre vou ter mais tempo livre que no primeiro, e por isso continua o turismo. Desde uma aula de História do tempo do Liceu que fiquei com uma enorme curiosidade sobre a floresta de Fontainebleu, para onde iam delirar os artistas da École de Barbizon, que fizeram nascer o naturalismo e, mais tarde, o impressionismo. E num domingo lá fui, com a Camila e a Reni.
Já afastado de Paris, o RER meteu-se durante alguns quilómetros por um bosque denso e escuro de árvores despidas e pinheiros altos para fazer paragem na ville de Fontainebleu. Cidadezinha pequena, essa que estava ali perdida e isolada no meio da floresta. Com o passar do tempo a urbanização não conseguiu nunca impor-se ao bosque, e portanto, é este que a consome, que se infiltra nela. Entra pelas ruas e pelos quintais das casas, que têm telhados oblíquos e mansardas com janelas tapadas por cortinas rendadas, de onde espreitam pessoas solitárias de vez em quando. Estava um dia pálido, o que fez com que a floresta me parecesse exactamente aquilo que estava á espera, um ambiente misterioso criado pela névoa baixa e pelo labirinto orgânico da vegetação, que não desvendavam o espaço senão nos metros próximos, e que impunham a vontade de me meter por todos os caminhos. No entanto, não tivemos muito tempo para penetrar o bosque, portanto terei que voltar lá novamente para aliviar a gana.
Em vez disso, aproveitámos o facto de ser o primeiro domingo de Março para visitarmos o Château, que está ali entre a ville e a forêt. Durante uns instantes acreditei ser uma duquesa bastarda qualquer, que suspirava pelos corredores luxuosos do palácio, ou que bordava á janela que dava para os jardins, esperando que chegasse a hora do baile que estava a ser preparado ali no salão, e onde então um príncipe havia de subir ao varandim e anunciar que queria casar comigo antes de ir para as batalhas, para que em qualquer caso eu herdasse tudo o que ele poderia perder. Mas tive que sair antes do baile, não deixei nenhum sapatinho para trás e toda a minha herança foi por água abaixo.

Paris 19 - Soirées parisiennes (La Java, résidence Lila, chez Celia, Flèche d'Or, maison du Cambodge, chez Fernando...) - Grève Générale

Com o novo semestre regressaram também as soirées de que tantas saudades já tinha. Uma vez encontrámo-nos no Hide Out, um bar irlandês em Odéon, com a cerveja de meio litro em promoção. Mais tarde, já com bastantes litros de bière na pança fomos apanhar o metro, onde o Jesus insistia em atirar a mochila para a linha, sabe-se lá porquê, e fomos acabar a noite num outro Hide Out, em Châtelet, com bailarico á mistura.
Numa outra soirée, lembrei-me de me encontrar com a Mariana e com a Diana, as portuguesas em Belleville. E, até agora, essa foi a minha noite mais bizarra em Paris. Nesses dias andava por cá o Filipe, também lá da Faup e que está a fazer erasmus em Berlim. Ele é que tinha a ideia fixa de irmos para o La Java, na Faubourg du Temple, mais um club subterrâneo igual aos outros, pensei eu. Mas quando nos encontrávamos na demorada fila para entrar, comecei a reparar nas gentes que ali estavam connosco: gajos de vestido, gajos de saltos altos, gajos de olhos pintados, gajos de lábios pintados, gajos loiros oxigenados, gajas de cabelo vermelho, gajas de cabelo azul, gajas tipo gajo e gajos tipo gaja. Nós ali éramos demasiado normais, e por isso, o porteiro, com uns lindos sapatos vermelhos que me haviam de ficar muito bem, não nos queria deixar entrar. A nossa sorte, ou a falta dela, foi que engraçou com o Filipe. Notou-se aliás aquele clima, aquela troca de olhares, aquele sem jeito, tão típicos do arranque de uma paixão. E depois disto e de termos sido avisadas de que não estaríamos confortáveis a não ser que fossemos lésbicas, lá descemos as escadas para um mundo surreal. Foi educativo. Já tinha visto gays e lésbicas em acção, mas nunca tinha visto nada assim. Nunca os tinha visto tão concentrados, tantos num mesmo sítio e ao mesmo tempo, e nunca os tinha visto como eles verdadeiramente são. Nunca tão á vontade, tão seguros de si, tão determinados, tão soltos e conscientemente tranquilos. Assistimos a todo o tipo de rituais de acasalamento, cujo mais vulgar, para os gajos, é o despir a camisola e a dança íntima em tronco nu. Depois disto, se o agrado for mútuo, seguem-se intensos beijos e apalpões, e mais não sei, nem quero saber. Em matéria de gajas, não pude descodificar os procedimentos, pois parece-me que não estavam ali para a caça, uma vez que já tinham cada uma a sua presa, para nosso bem. Depois havia os envergonhados, de aspecto menos estrondoso, que ficavam encostados á parede observando as danças delirantes dos outros ao ritmo de música batida. De vez em quando eram abordados pelos mais soltos, que lhes abanavam as ancas ou lhes iam tirando os casacos para se sentirem mais á vontade. Também já havia os casais masculinos formados á priori, como o Augusto, um brasileiro de Belleville que cheguei a conhecer há uns tempos, que estava ali feliz com o namorado. Outros casos foram difíceis de compreender, como por exemplo a surpresa de ter encontrado ali o Cosimo, um florentino da minha escola, que eu nunca pensei que fosse gay. Como ele, havia gajos de ar completamente normal, que nunca lhes chamaríamos de homossexuais, mas que nos confundiam as ideias quando se começavam a lamber uns aos outros. Confusa era igualmente a ida á casa de banho. Desta vez a fila para a das gajas não era grande só por causa das gajas, também lá iam os gajos e os lavatórios eram ocupados igualmente por eles, a retocarem a maquilhagem e a oferecerem o gloss uns aos outros. Apesar de no princípio ter sido divertido, principalmente a tentar atribuir o prémio ao mais interessante (que acabou por ser o sujeito de bigode com o vestido azul de cetim já alucinado de pastilha), às tantas nós as três começámos a reparar que estávamos ali a mais. Não só o sentíamos como era realmente verdade, pois tínhamos que estar sempre a desviar-nos já que estávamos permanentemente a meio de algum engate. O Filipe ainda lá ficou, pois segundo ele, aquilo era o paraíso.

Numa quarta-feira, finalmente, o comité aqui da Résidence decidiu organizar uma festa. Houve um concerto de jazz com fanfare no fim, petiscos e bebidas á borla. Foi bom porque passei a conhecer mais residentes que os únicos três que conhecia (a Inês, lisboeta que faz arquitectura em Belleville, o Miguel venezuelano da minha escola que entretanto se mudou para cá, e o pretinho simpático de orelhas saídas que não sei bem de onde vem).
Realmente, a esta residência falta-lhe qualquer coisa, é um nadinha para o morto e o anti-social, ao contrário das outras que ficam na Cité Universitaire, na Porte d’Orleans. Talvez estas festas, se passarem a ser feitas com alguma frequência dêem um jeito á coisa. Portanto, uns dos que cheguei a conhecer foram a Steffania e o Mattia, italianos de Breschia, que eu já tinha visto por cá, quase todas as noites nos matraquilhos da cafetaria. Os dois porreiros, no entanto ela, não sei porquê, pareceu-me lésbica. Outro que ficou a fazer parte dos conhecidos foi um senegalês que agora me persegue. Um dia calhou de me seguir no elevador, e não conseguindo despistá-lo, dei-lhe a conhecer o número do meu quarto. De vez em quando vem aí tocar á campainha, e então tenho que fazer pouco barulho para que se vá embora. Já não é o primeiro a fazer isto, já houve um outro, também senegalês que me seguia, mas depois, enfim, desistiu. São meios doidos, não podemos dizer-lhes olá sem que pensem que queremos alguma coisa com eles.

Na sexta-feira seguinte houve mais uma festa com os erasmus, agora em casa de uma das gregas que chegou em Fevereiro, a Celia (já sei o nome), para os lados da Gambetta. Eu e ela éramos as únicas que não falávamos espanhol, pois as brasileiras têm ficado por casa, apesar dos meus esforços para as fazer sair. Penso que andam ainda um pouco depressivas do frio que apanharam até aqui. Também eu ficava se viesse do Rio. Nessa noite, então, foi a Majo que tratou da minha saúde, fazendo-me perder a conta aos gin tónicos que me foi servindo. Ficou tudo maluco. O Jesus portou-se mal outra vez e atirou as sapatilhas da varanda daquele sétimo andar, para depois descer á rua de meias, tirar a t-shirt e começar a dançar lá no meio até que os empregados do bar em frente tivessem ido em seu socorro. O Jesus faz sempre qualquer coisa. A pior, pelo que soube, foi na Suíça, em casa do Laurent, quando se lembrou de sair quase sem roupa para os graus negativos de plena noite na montanha, perdendo-se para lá e pondo toda a gente á procura dele. Parece que esteve desaparecido durante mais de uma hora, sob o risco de adormecer e congelar algures. Depois apareceu subitamente, e levou porrada, bastante e merecida.
Após termos aturado ainda um vizinho francês histérico que não conseguia dormir, fomos Paris fora para o Flèche d’Or. A partir daí já não sei bem o que se passou. Lembro-me de estar ainda com a Majo quando toda a gente já tinha ido embora, enquanto ela batia coro a uma lésbica loira e um amigo dela continuava a pagar-nos gin tónicos com cartão de crédito. Parece que voltamos a casa num dos primeiros metros da manhã, e certeza, certeza, tenho de que acordei na minha cama com a cabeça para os pés.
Ainda a ressacar dos gin tónicos fui numa nova festa com os meus vizinhos italianos, a Steffania e o Mattia, na maison do Cambodja, na Cité Universitaire. Desta vez fiquei-me por algumas cervejas do Lidl.

E entre estas festas e outras a que faltei em casa do Fernando mexicano, um dia, um domingo, acordei com a Primavera. E fui andar de vélib, com a Camila e o irmão dela, o Bruno, que a veio visitar. Que bom! Uma vélib, uma brisa agradável, cabelos esvoaçantes, muita luz, la Seine reluzente, as margens plenas de povo como lagartixas ao sol e música de concertinas no ar. Perfeito. E como eu adoro Paris assim!

Outro dia, quando no trabalho o Nelson me pediu para ir comprar material á Boulevard Beaumarchais, estavam por ali piquetes de greve e sindicatos que se organizavam para uma manif depois do almoço. Era dia de greve. Das grandes. Grève générale par toute la France! Então, ao princípio da tarde, depois de ter ido comer ao Crous, não fui para casa. Resolvi sair na République. Estava cansada, e tinha na ideia ir só espreitar a manif. Mas a République estava mais espectacular que nunca! Carregada de bandeiras, povo, povo e mais povo, música e exclamações de revolução! E porque c’est dans la rue que ça se passe, não resisti a ir ali no meio pela Boulevard Voltaire até á Nation, a cantar com três milhões a Internacional e a mandar para algum lado o Sarkozy. Inesquecível!

Mais actualidades: a minha escola passou a ser um hospital. Nas paredes não estão mais avisos e informações sobre arquitectura. Agora estão penduradas indicações para a neurologia, a maternidade ou as urgências. Já não há profs, nem alunos, nem maquetes, mas antes médicos, doentes e macas. Tudo isto porque estão a filmar aí uma espécie de Anatomia de Grey francesa, com enfermeiras metidas com doutores. Acho que lhes cheguei a estragar uma cena, quando ia para a biblioteca. “Atention! Atention! Silence! …Action!” e aí deixo bater a porta atrás de mim estrondosamente. Acontece.
Outra coisa: almôndegas! Agora também como almôndegas. Descobri-as a um euro e meio trinta num Franprix aqui perto de casa. Bem boas! Tão boas que as como tanto ao almoço como ao jantar e às vezes até ao lanche. E para já, c’est tout!

Paris 20 - e então chegou Abril...

É assim: a brincar a brincar, já lá foram dois meses desde que comecei a trabalhar no Nelson. E a ideia era acabar por aqui, para nos próximos meses que me restam de boa vida ir estourar o fruto de sessenta dias a acordar com os passarinhos, a bater com a cabeça nas paredes para me pôr em forma e a chamar nomes ao que teve a ideia de que deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer. Mas na sexta-feira antes de me ir embora, o Nelson e a Natalia chamaram-nos para uma soirée lá no gabinete, uma espécie de despedida á qual eu ia faltar porque tinha convidado para jantar o Pedro e a Andreia, de Guimarães, que entretanto tinham chegado a Paris num avião da Ryanair. Em torno da maquete de uma torre para les Halles que eu tenho estado a fazer e a rogar para que as peças que desenhei previamente para serem cortadas a laser batam certo na montagem, bebemos bom vinho, do caro, e petiscámos umas tostinhas com patés e queijinhos avecs, bem bons (principalmente para mim que não tinha jantado). Na descontracção conversávamos sobre o projecto do Archi-turn que se estava a desenvolver, de música, filmes, clubs porreiros em Paris e tal. Essa coisa do projecto Archi-turn é interessante. O objectivo é associar arquitectos de todo o mundo para um propósito comum: vender projectos de qualidade não aos preços da arquitectura como os conhecemos, mas a preços acessíveis a qualquer um, ou seja, uma espécie de arquitectura low cost. Porreiro mesmo, pensar que um dia a boa arquitectura não será só para os paneleiros que jantam nos Champs Élysées.
A base do projecto será um site na internet, e um dos principais que o está a desenvolver é aquele sujeito esquisito que aparece de vez em quando no gabinete, o Simon, que tem junto á secretária, que fica separada das nossas, um disco de platina do Grégoire - João Pedro Pais francês. Desde o princípio que me pergunto quem é aquele sacaninha que entra e sai dali sempre a falar ao telemóvel, ou a fazer de conta, sem dizer bom dia nem boa tarde, e que fez muito má cara quando nos primeiros dias o Nelson me pôs a cortar acrílico na secretária dele. Besta. Parece que gosta de entrar em negócios, sobretudo pela net, o que explicará o disco do Gregoire, que mantém ali como um ícone divino.
Outros que têm aparecido ao gabinete para colaborar são a Victoria, irmã gémea do Nelson. Com o passar do tempo começou a ser simpática. Ou o Arthur, também designer, sorridente a toda a hora e que, pelo que soube, é um dos que entra na produção do filme de animação que está agora em todas as salas de cinema, pelo menos francesas, “La véritable histoire du chat botté”. Nas vozes entra ele, o pai, a irmã…que são todos actores por estes lados. Já estava para ir ver o filme antes de saber disto, e agora, vai ter mesmo que ser.
Bem, no meio disto tudo, o Nelson sugere que eu volte depois. Que posso dar as minhas voltinhas, e nos entretantos, quando estiver por Paris, que apareça para dar uma mãozinha. Fiquei contente. Gostei destes dois meses a trabalhar ali (apesar do acordar precoce) e não me imagino mais a estar em Paris sem ir para lá. O “patrão” e a “patroa” têm sido óptimos, e quando me for embora hão de me deixar saudades, ainda que o que me paguem não chegue para compensar a minha residência cá (já que é o montante estabelecido para as remunerações de estágio que tem a ver com coisas muito mais complexas que a consciência de cada um).
E então chegou Abril! Tão rápido! Ainda há pouco tremia na rua e fazia equilibrismo para não escorregar no gelo e na neve, e agora pergunto ao casaco se não me há-de pôr comichão no pescoço e a cheirar a catinga. Há pouco contava as últimas folhas vermelhas da árvore do pátio da résidence e agora vou contando as verdes que aparecem cada manhã. Ainda há pouco pensava no que iria fazer quando escurecesse tão cedo e agora penso em como hei-de aproveitar tantas horas de luz que tenho por dia. Há pouco pensava se conseguiria sobreviver ao gélido inverno, e agora, onde ele já vai e como eu o adorei! E como eu vou adorar Paris com as suas boulevards verdes, e la Seine de outro tom, e que, não tarda nada passam a ser uma boa recordação também.
Então, as voltinhas que fiquei para dar…Tive uma óptima proposta para ir a Istambul, uma viagem magnífica: alguns erasmus (os espanhóis), daqui a Basileia de comboio, depois avião para Istambul, alguns dias lá, bilhete de combóio interrail e regresso a Paris por Sófia. Estive mesmo mesmo quase para ir, nestas férias da Páscoa, e vou-me trincar toda por não ter ido. Mas enfim, se fosse, tanto não teria orçamento para a ida a Amsterdam em Maio com o Manecas, nem deixaria contente o povo de casa que me espera, mal habituado, nesta altura. No entanto, na esperança de que um dia hei-de ganhar o suficiente para andar às voltas á vontade sem ter que encher o caderno da escola de preços para ver o mais barato, chego aí no dia de Páscoa ao fim da tarde. Ainda: Roma ou Berlim? Londres, pronto, no regresso passo por Londres antes de voltar a Paris. Encontro-me com a Mariana e a Diana que estarão por lá e aproveito para conhecer uma das cidades em que nunca tive a oportunidade de pôr os pés.

Tive então por aqui dois visitantes portugueses, o Pedro e a Andreia, que ficaram num hotelzinho perto da Bastille. Désolée, mas nestes dias andei meia retardada, com muita coisa para fazer, porcarias para tratar, constipada e cansada, e não passei com eles tanto tempo como previra para mostrar a ville de Paris. Mas eles safaram-se bem, vieram já com um guia organizado por dias e coisas para visitar, tudo direitinho, e nem precisaram de mim. Foi melhor assim. Aliás, um dos dias em que andei com eles, acabaram por não ver quase nada, já que eu no meu andamento de habituada á cidade os levei a tomar café e a percorrer ruas, e quando quiseram entrar em alguma coisa, tipo Panteão, já estava fechado. Desorganizava-lhes portanto os planos contadinhos para os seus dias aqui.
Na noite em que foram embora, o Miguel da Venezuela meu vizinho da résidence fazia anos. Nesta altura está mudado para um quarto no piso abaixo do meu, porque o dele também foi para obras por umas semanas. Foi uma festa porreira. Um quarto pouco maior que este (porque faz gaveto), erasmus que quase não cabiam lá, mais povo venezuelano que nunca tinha visto em lado nenhum, e vinho, muito vinho que eu vinha aqui buscar de vez em quando. É bom no fim da festa e da bebedeira só ter que subir umas escadas e já estar na cama, sem ter que correr para apanhar metros ou noctiliens.

Paris 21 - "Lila" commence á vivre! - último dia em Chemin Vert?

Coisas interessantes dos últimos dias…Depois de uma visita aos Invalides com toda a sua colecção de quinquilharias de guerras no primeiro domingo de Abril que mais parecia um domingo de Julho, chego tarde mas ainda com dia á residência das Lilas. A sempre vazia cafetaria estava naquele fim de tarde quente cheia de gente e aberta para o jardim. Havia festa mais uma vez! Deixo as tralhas no quartito e desço num á vontade de quem está em casa e vai á sala de estar, e encontro o povo todo já eufórico a engolir cerveja quente e na habitual gritaria em torno de torneios de matraquilhos e ténis de mesa. Rapidamente me integro no ambiente, pego na cervejinha á pala e ando por ali entre os círculos em torno das jogatinas e o pátio da residência que agora lança verde e cânticos de passarada. Misturo-me com o pessoal que conheci na festa anterior e outros que já tinha visto mas com quem falei a primeira vez. Este final de dia fez-me lembrar os primeiros encontros de erasmus em Setembro e Outubro, que já lá vão há muito mas parece que foram ontem. Pareceu realmente que chegámos aqui estes dias, e desenrolámos as normais conversas de apresentação e de confronto de culturas e ocupações académicas. Assim, para além da Steffania e do Mattia, com quem passei a dar-me bem, conheci mais uns quantos italianos, os brasileiros Rafael, Gustavo ou a Lívia que estuda cinema, o Nicolas colombiano que faz doutoramento em Filosofia, a Olga russa que faz Direito e mais uma russa que me disse muita coisa em russo mas que a cerveja quente me fez esquecer depois, o chinês que joga basket, a Marie francesa que há-de fazer do violoncelo a vida e que deve ter gostado muito de mim porque não voltou a deixar a minha companhia desde o primeiro contacto. E ainda outros tantos que a cerveja, e o vinho quando ela acabou, me complicaram as memórias. Entre matrecos, raquetes e tentativas de fazer malabarismo, acende-se um fogareiro lá fora e começa a cheirar a salsichas e pimentos tostados, e depois, já com a pança cheia e regalada, toca a banda de fanfare - começa o bailarico! E assim fomos pela noite dentro, aos pinotes e piruetas, até nos recolhermos cada um no seu quartinho já ali, cansados de tantos saltinhos mas plenamente satisfeitos por terminar um óptimo domingo da melhor forma. Claro que isto de festas ao domingo não é a melhor ideia, porque na manhã seguinte, lá no trabalhinho, há que esconder os olhos vermelhos e pedir á cabeça para que não descaia.
Mais coisas, mais uma entrega de projecto. E no meio de tanta festarola, acabei por me baldar um bocado aos meus deveres. Consciente de que o meu projecto não avançou quase nada desde a entrega passada, quase há um mês, mostrei aos profs o meu descontentamento. Mas eles são uns porreiros e compreenderam na boa a minha situação: situação de erasmus – festas, passeio, turismo. No entanto, não deixaram de referir que tinham pena que a minha situação seja esta, pois eu tenho um projecto com muita qualidade e gostavam de o ver desenvolvido. Apesar do mal, fico feliz.

E hoje seria o meu último dia no gabinete do Nelson, mas antes que me despedisse, ficou claro que quando eu regressar das férias, que volte a pôr lá os pés logo na primeira segunda-feira para ajudar e para mais tarde irmos ao teatro dos Champs Élysées (coincidência, irmos parar aos Champs Élysées) ver a ópera em que colaborou a Juliette, irmã do Arthur do gato das botas, e para a qual o Nelson desenvolveu o projecto do cenário. Problema será arranjar uma alternativa às minhas sapatilhas podres e às calças de ganga.
Portanto, hoje seria o meu último dia porque amanhã é dia de desentranhar a bodeguice do meu quarto, meter tralha na mala e encaminhar-me a Austerlitz. E Austerlitz significa 20 horas de comboio para casa, ou melhor, devia significar, se tudo fosse como da última vez. Mas não é, e eu estou a dar nós na cabeça porque amanhã vou meter-me num comboio já pago que só vai até meio de caminho. A segunda metade, de Irun para aí, é uma incógnita. Acabei de descobrir que já não há lugares no único comboio do dia que poderia apanhar para Orense, ou para qualquer um desses lados. Que me resta? Autocarro! Então, no dia em que um homenzinho bom vai ressuscitar (aleluia, aleluia) eu vou estar a contar metros de estrada espanhola, entalada contra um vidro por alguma gorda de bigode a coçar os joanetes suados por dentro da meia de lycra. Ou então fico para descobrir como será um domingo de Páscoa numa estação de comboio do País Basco. Bem, até daqui a pouco, mais uma vez, e se tudo correr bem.

Paris 22 - mais uma voyage!

Ainda que tenha andado durante 24 horas como um pêndulo entre terras, comboios e autocarros até chegar á rua 5 de Outubro para ver estourar um judas, tive sorte, muita sorte com a minha viagem.
No dia de deixar Paris, consegui reservar os últimos lugares de comboio de Irun a Leon e autocarro daí até Monforte de Lemos, e encontrar á ultima hora um sítio aberto para imprimir as reservas. E então, ao fim do dia, chegou a hora de dizer um adeuzinho ao meu studio e enfrentar o que me esperava. Com medo que mais algum doudo decidisse atirar-se para a linha de metro cheguei bem cedo a Austerlitz, e com uma mala muito mais funcional. Aproveitei para me sentar a um canto a comer as minhas sandes de fiambre de peru antes de entrar para o comboio e para me ir mentalizando que desta vez poderiam calhar-me cinco marroquinos com dentes de ouro a feder a vinho como companheiros de quarto. Apeteceu-me dançar de alegria quando, ao entrar no compartimento, vi que estava sozinha. Mas ainda era cedo. Os marroquinos poderiam entrar em qualquer altura. Fui-me então instalando na cama de cima de todo, do lado direito, que o meu pai fez o favor de reservar de acordo com a minha preferência e fiquei á espera…até que apareceu uma chinesinha aí duns 10 anitos toda sorridente e me disse bon soir! Atrás dela vinha o resto da família: um irmãozito mais novo, a mãe, o pai e talvez um tio. Entre xin xens e ping pongs que pronunciavam entre si, falavam comigo uns em francês, outros em Inglês, não entendi porquê, e, apesar de eu estar ali a mais, foram todos muito simpáticos, não ressonavam, não cheiravam mal, nem decidiram deitar-se logo que o comboio arrancasse, não me obrigando a ir para o corredor ler jornais. Assim, ao contrário da última vez, a viagem nocturna correu bem. Tinha sido informada que o comboio não iria até Irun por motivo de obras na linha e continuava para Lourdes (para onde talvez fossem os chinesitos), e então tive que acordar uma hora mais cedo que o previsto, lá para as 5 da manhã, para sair em Bayonne e fazer o resto de autocarro. Pude ver o amanhecer á beira-mar em Hendaye e a quantidade de verde húmido que já dominava o País Basco. Em Irun nem deu tempo para tomar café, e com pena do povo que lá estava a precisar de ir para algum lado e que ficou em terra porque não havia bilhetes para lado nenhum, procurei o meu lugar na carruagem da primeira classe. Penso que as pessoas que ali estavam se aperceberam da minha felicidade quando me atirei para a minha poltrona, confortabilíssima, espaçosa, bem encostada a um janelão e sem cadeiras vizinhas. E que longo sono dormi nela, debaixo do meu casaco verde! Tão longo que quando acordei, tive para aí uma hora para ver paisagem, ir tomar um café ao vagão cafetaria e descer em Leon. Da estação fui para a central de camionagem, que não ficava longe, e pus-me a pensar no que fazer com as três horas que faltavam para me meter no próximo autocarro. Em frente á central passava o rio, e do outro lado tinha um parquezinho ao longo da marginal e uma feira. Só precisava de pousar a mala nos cacifos. Mas os cacifos pediam fichas. Fui á mulher da Alsa confirmar a reserva e perguntar pelas fichas. Mandou-me às informações, fechadas. Três voltas ao posto á procura de um horário que não estava lá, volto á mulher da Alsa, que cada vez fica mais mal disposta por ter que responder às minhas perguntas. Digo-lhe que está fechado e que quero fichas. Ela diz-me para ver o horário, eu digo-lhe que não há horário, ela diz-me para ver o horário e às tantas já estamos a discutir, ela fica raivosa, eu agradeço e vou-me embora. Raio de mulheres espanholas que têm sempre que embirrar. Descobri o horário na outra ponta da estação, bem longe das informações. Cerrado, claro, era domingo de Páscoa, e por isso, em dias de Páscoa há que carregar as malas às costas. Mesmo assim, fui ao parquezito, sentei-me num banquinho a ver os putos a borrar a roupa nova com verdete e a cuscar toda a vida boémia do Hemingway na revista que ofereceram no comboio. Três horas depois entro para o autocarro, o meu terceiro transporte a contar de Paris, que me custou a perceber se era o correcto porque mostrava o itinerário alterado, e fui por umas duas horas apertada para ir á casa de banho até Ponferrada, contudo, sem mulheres de bigode como vizinhas. Em Ponferrada apanhei então o último autocarro que me faltava e lá cheguei mais tarde a Monforte, onde estacionava um Kia cinzento bem familiar do qual saíam dois sujeitos também familiares: o Manecas e o meu pai, que me levaram por mais duas horitas gordas até á terrinha, em se juntavam os seus medonhos habitantes em torno de um judas pendurado pelo pescoço, mais uns quantos familiares que me fizeram logo esquecer que vinha da França, desde a noite anterior, e aos rebuliços por aí.

Paris 23 – London 1 - ressaca com vista para o Tate

Entre esta estadia e o dia em que vos escrevo já passou mais de um mês e eu já passei por tanta coisa e tanto sítio que nem sei se vou conseguir lembrar-me de tudo para vos contar.
Estamos em finais de Maio. A 22 de Abril, depois de uns dias sossegados em terras vimaranenses, acordei cedo demais para a minha disposição e com uma ligeira ressaca consequente da noite anterior no B.A., e fui deixada pelo Manecas no aeroporto para embarcar num voo que me havia de deixar em Londres. Enquanto ia no ar começava-me a arrepender de ter programado tal viagem, pois começava-me a pesar cada vez mais a noite pouco dormida e punha-me a imaginar a aterrar algures num sítio onde nunca estive, em fraca forma, e a ter que me desenrascar sozinha a tratar das primeiras coisas como arranjar libras, transportar-me para o centro da cidade, arranjar passes de metro, descobrir o hostel onde ia ficar, e sempre com uma mala de rastos e sem um mapa decente para me orientar.
Mas depois de muito tempo a sobrevoar água, quando apareceu terra á vista, dei por mim a sorrir porque estava a ver Inglaterra pela primeira vez. Mentira, já a tinha visto de perto de Calais, mas agora era diferente, porque estava sobre ela e sabia que ia para lá. E quando se sabe que se vai conhecer alguma coisa pela primeira vez, tudo o resto passa a ser nada, tudo é engolido pelo entusiasmo, pela energia súbita que vem da vontade enorme de aterrar o mais rápido possível para ir então explorar território incógnito.
À uma da tarde estava eu em Gatwick, primeiro retida numa fila enorme para atenuar a paranóia inglesa no controlo de passaportes, depois a levantar umas notas estranhas com a fronha da velha a quem chamam rainha, e mais tarde a estudar a mais económica forma de me pôr no centro de Londres: comboio tipo RER até Victoria. Só neste bocadinho em que estive no aeroporto e na viagem de comboio pude notar o quanto aquela terra era tão particular em relação a tudo o que conhecia. Tinha alguma coisa do norte de França, como por exemplo a paisagem, que de algum modo continua a paisagem francesa, mas só a forma como a organizam, torna-a completamente diferente, para além de ser ainda mais verde e mais húmida. É tudo muito certinho, todos os campos parecem ter manutenção todos os dias, de tal forma como se mostram aparados. Em muitos deles estão campos de golf, e noutros, centros hípicos. As árvores têm o seu sítio próprio para crescerem. Casinhas de tijolo burro vermelho como casinhas de brincar, todas iguais, com os seus telhados vincados e cada uma com grande área de verde onde se desenvolvem hortas de todos os feitios. Só mesmo a chegar a Londres a paisagem muda por completo, é o verdadeiro contraste. Contra a ordem, vem a desordem. Esta foi a minha primeira impressão de Londres, e será talvez a imagem da cidade que vou guardar na memória: o caos, a desorganização, o ecletismo, a mistura, dentro da própria cidade, e em relação ao território que a envolve. No entanto, tanta heterogeneidade, tantas cidades, conseguem fundir-se dentro de uma só, e em toda aquela desordem consegue-se descobrir a unidade. Paris tem, também, sem dúvida, unidade: as ruas ou boulevards são geralmente do mesmo tipo, bem definidas por edifícios que embora diferentes uns dos outros são quase sempre da mesma altura, do mesmo estilo, de um mesmo tom. Mas Londres é diferente, porque essa unidade não surge da semelhança entre os elementos urbanos, eles unem-se antes pelas diferenças que apresentam na relação uns com os outros. Nos meus primeiros momentos em Londres, por trazer um hábito da ordem parisiense, achei aquilo feio, sufocante e a sentir-me confusa com a confusão urbana. Horas depois, já mais desvinculada da outra ideia de cidade, comecei a perceber que aquela em que estava, por tantas diferenças, conseguia ser muito mais enriquecedora. E foi, durante os três dias e meio que estive por ali.
O turista que gosta de coleccionar postais, em Londres sentir-se-á perdido. Podem sempre tirar-se algumas fotos com o Big Ben no fundo, ou com a Tower Bridge, a Westminster Abbey, a London Tower ou o palácio de Buckingham. Mas a riqueza de Londres está muito para além dessas imagens que podemos sempre colar no frigorífico.
Voltando ao meu percurso de recém chegada, na Victoria station tratei de me legalizar para o metro, e a seguir lá me meti no Underground para uma estação próxima do YMCA, onde iria dormir e onde me deveria encontrar com a Diana e com a Mariana, que chegaram a Heathrow vindas de Berlim umas horas antes. Não fazia ideia de que tipo de zona era aquela em que ficava o hostel, a norte de Barbican, e confesso que tive um bocado de medo, quando andava por ali a dobrar esquinas com uma impressão de um mapinha do Google na mão, uma mala de rodinhas e um portátil ás costas, enquanto sujeitos esquisitos olhavam para mim de forma igualmente esquisita. Eram já quatro da tarde quando fiz o check in e pousei as tralhas num quartinho bem porreiro com umas águas furtadas e televisão. Elas estavam também naquele piso. Fiz-lhes uma visita pouco depois, e vi que vinham tão rotas de Berlim como eu de Portugal, pois dormiam ali uma longa sesta desde que tinham chegado. Ainda bem que estávamos as três na mesma forma física, pois ainda que tivéssemos vontade de explorar a cidade, resolvemos que poderíamos reservar aquela tarde para irmos até á beira-rio e estendermo-nos num muro ao sol, a apreciar o skyline da margem sul, no qual se destacava o imponente e sóbrio Tate, e para pormos a conversa em dia e falar mal dos franceses. Ficámos horas ali, a ouvir as ondas do Tamisa a rasparem as pedras da margem, e já quando o sol estava mais frio, atravessámos a London bridge e descobrimos a primeira micro cidade londrina, a que rodeava o Borough market, e ficámos a perceber que por ali deveriam haver centenas de cantinhos porreiros como aquele para conhecer, e que o povo daquela terra deveria ser um dos povos mais bem-dispostos da Europa. Para além disto, em relação ao povo, fiquei ainda contente por me aperceber de que o povo é mais normal ali que em Paris. Há a mesma mistura de povo, o mesmo cosmopolitismo, mas ali, é saudável, não se fica doido. Em Paris, há racismo, e talvez por isso, pela alienação, começam todos a pirar um bocado uns com os outros. Foi o que me pareceu, posso estar errada, pois afinal foram apenas três dias. No entanto, sei que basta um dia em Paris para me deparar com um bom número de loucos, sejam franceses ou de outra etnia qualquer.
Portanto, Borough deveria ser uma zona de antigos armazéns, relacionados talvez com alguma actividade fluvial (a procura de informação, por preguiça, foi um pouco deficiente), e que tinham sido há pouco tempo reabilitados e aproveitados para restaurantes e bares. O povo, de fatinho e saído do trabalho, era muito, e a cerveja que rolava ali, era ainda mais. Noutro fim de tarde havíamos de juntar-nos á festa, porque naquele momento era mais importante matar a fome. Depois de degustadas umas pizzas turcas o cansaço fez-nos andar para o ninho, e porque no dia seguinte queríamos ir ao Tate, era preciso acordar cedo para não perder o dia.

Paris 24 – London 2 - please mind the gap between the train and the station

Como planeámos, acordámos cedinho e recompostas para ir ao Tate. No hostel, o pequeno-almoço estava incluído, mas àquela hora da manhã nenhuma de nós teve estômago para comer o gorduroso english breakfast: uma mixórdia de salsichas sebosas, ovos estrelados e feijão cozido. Apesar do olhar de gozo do funcionário, enchemo-nos de cereais com iogurte que havia em alternativa e umas três doses de café cada uma na esperança de que despertasse um bocadito.
Fascinadas pelo Tate, tanto pela colecção de arte como pelo restauro dos Herzog & De Meuron gastámos lá não só a manhã toda, como ainda almoçámos e avançámos por um pedaço da tarde, até que, quando subimos ao último piso, á enorme cafetaria que se estende de uma ponta á outra do edifício, e nos deparámos com a vista panorâmica da pesada cidade do outro lado do rio, voltámos a ter sede de mundo real e saímos para a rua novamente. Atravessámos a Millenium bridge, do Foster, que é bem porreira se compararmos com a torre que ele foi fazer do outro lado á qual chamámos de “pila” porque não pode ter outro nome, e caminhámos ao longo do rio acastanhado até ao Temple. Coisa estranha, o Temple. É um mundo dentro de outro mundo. Já tinha percebido que Londres era assim, feito de mundos pequenos, mas o Temple não se relaciona com o exterior, nem quer. É uma micro cidade religiosa que, se não estivesse agora adaptada a escritórios e coisas assim, estaria envolvida por um mistério medonho, pareceria uma espécie de esconderijo de algum segredo obscuro que de forma alguma poderia sair dali. Ou então sou eu que ando a ver filmes a mais. Talvez, mas, de qualquer modo, por cima das entradas do rés-do-chão há sempre um carneirinho esculpido que dá arrepios. Dali, resolvemos, por descargo de consciência, acabar de bater os pontos turísticos da zona leste: London tower e tower bridge, e depois, ficámos alapadas num jardim a apreciar o interessante efeito da confusão das gigantes gruas com os altos e baixos edifícios do lado norte do rio. Como no fim de tarde anterior, a partir das cinco da tarde, quando começa a happy hour, já andava tudo na rua outra vez a enfrascar cerveja e numa boa disposição contagiante, e que, conseguia superar a do dia anterior porque era dia de festejar o Saint George, sim, o São Jorge, que é padroeiro de Inglaterra. E por isso, os mais velhos, que eram os que deviam ter juízo, apareciam á rua vestidos de cavalo, ou de São Jorge, ou de outra coisa qualquer que tivesse a ver com a terra deles.
Por Londres fora, quase a sermos atropeladas infinitas vezes ao atravessar a rua apesar dos “look right” sempre bem marcados no chão, fomos parar aos lados do Soho, onde por acaso vi a casa onde viveu alguma vez o Marx. Ali perto é a China Town, bem demarcada do resto da cidade, percebe-se bem onde começa e onde acaba, e foi por ali que jantámos, num restaurante tailandês a seis libras cada uma. Ao contrário do que pensei, fizemos sempre refeições a preços acessíveis que nem em Paris. A cerveja, o café, a comida, tudo é mais barato que em Paris. No fim, deambulámos pelas ruas bem animadas do Soho, onde havia bares para todos os gostos, para normais, para gays, para carentes, para os mais velhos, para os mais novos. Sempre povo na rua, sempre cerveja. E acabámos em Picadilly Circus, em frente ao incandescente ecrã luminoso com publicidades do McDonalds que ocupa uma fachada inteira e a aturar três teenagers britânicas bêbedas que queriam vender uma garrafa de vinho para poderem entrar num club ali perto.
No dia seguinte o funcionário dos pequenos-almoços mostrou-se mais compreensivo e já não se riu tanto na nossa cara de enjoadas perante o bacon frito.
Tínhamos planeado a manhã para ir às compras, ou não, a Camden Town. Todas as cidades deviam ter uma Camden Town. Não é que eu me fascine por compras, mas dá gosto ir ali. Mais uma micro cidade, esta destinada a um comércio pouco banal. Lá há tudo para (quase) todo o tipo de gente. Lá são felizes os metaleiros, os góticos, os punks, os retro, os emos, os folks, os clássicos, os minimalistas, os hippies, os pops, os transes, os technos, os ecléticos, os blacks, os nerds, os africanos, os asiáticos, os europeus, os australianos, os americanos, os matarroanos. Todos, menos os que procuram Tommy Hillfigher ou Ralph Lauren. Há feira, há lojas na rua, há túneis, docas antigas e edifícios de ferro e vidro transformados em shoppings. Há lojas de roupa, de música, de livros, de coisas novas, de coisas usadas, de objectos com todas as formas, feitios e utilidades. Há coisas úteis e inúteis. Coisas que prestam e que não prestam. Cheira a incenso, a pele de camelo ou de cavalo, a chá disto e daquilo, a comida chinesa, turca, indiana, ou não cheira a nada. Há budas e cruzes, flores e espadas, máquinas do tempo, cavalos de pau, cabeleiras postiças, vestidos de cabaret. Há chiclas de bafo de cão, sapatos com forma de gato, dragões para fachadas, memórias de elefante. Há de tudo num sítio só. E Londres é todo assim, uma cidade só, feita de tanta coisa.

Mais tarde fomos calhar por acaso á National Gallery, e seguimos depois o roteiro turístico até ao Big Ben e á Westminter Abbey. Dali, quisemos ver uma casota do Siza no Hide Park que já não existia e batemos aquele pedaço de verde todo até ao Buckingham palace. Tiradas umas fotos aos desgraçados dos beafeaters, ainda tivemos tempo de matar aquela curiosidadezinha sobre Notting Hill. Nada de especial. Esta última jornada acabou noutra zona porreira da cidade que já não sei como se chama, com um jantar num restaurante de fast food saudável e com um brinde de cerveja num tasco surdo de gargalhada inglesa.
Adormecemos com o sentimento de dever cumprido, com a vontade de regressar, e com o “please mind the gap between the train and the station” a ecoar desde o Underground aos ouvidos.
No dia seguinte, quando dei por isso, já estava a sobrevoar o canal da Mancha e a aterrar em Charles de Gaulle. E bienvenue de nouveau á Paris!